Os indígenas e os públicos engajados/interessados foram convidados a comentar a relevância e o impacto de estudos que mostram a importância dos povos indígenas para a conservação das florestas e para as soluções climáticas. Uma parcela destacou a atenção que começou a ser dada aos povos indígenas por órgãos e fóruns internacionais, como a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), como resultado de uma série de pesquisas, artigos científicos e relatórios produzidos nas últimas décadas.
Apesar de críticas pontuais ao que foi chamado de relação utilitarista com os indígenas, a maioria dos entrevistados descreveu os estudos como relevantes e importantes, ainda que não tenham sido devidamente divulgados ou considerados para a formulação de políticas públicas no país.
Trabalhos de organizações brasileiras foram os mais citados pelos públicos engajados. Os dados disponibilizados pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) foram citados recorrentemente mais uma vez. Entre estudos específicos, os do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), como o que mostra porque as terras indígenas são importantes barreiras ao desmatamento e reservas de carbono, foram os mais lembrados.
Carlos Nobre, Antônio Nobre, Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Neves foram os nomes mais mencionados, especialmente pelos próprios cientistas, jornalistas da grande imprensa e ONGs ambientalistas, e Eduardo Viveiros de Castro, por jornalistas e entrevistados do campo da arte e da cultura.
A participação efetiva de indígenas em projetos de pesquisas; a inserção do conhecimento tradicional como conhecimento científico e tecnologia; e a necessidade de novas formas de (co)produção de conhecimento estiveram entre as principais ponderações dos entrevistados, especialmente os indígenas.
Propostas e projetos de pesquisa que vêm sendo elaborados tentando incorporar em alguma medida essas questões foram destacados. A Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), chamada de “IPCC da biodiversidade”, foi descrita por cientistas como uma grande novidade nesse sentido. O relatório global IPBES, lançado em 2019, desenvolveu mecanismos para a integração do conhecimento indígena, tradicional e local no aperfeiçoamento da governança global da biodiversidade.
O Painel Científico para a Amazônia (SPA, sigla em inglês) e o Amazônia 4.0 foram os projetos mais citados entre os que “tentam inovar na participação e inclusão de povos tradicionais na elaboração de caminhos sustentáveis para o bioma”. O SPA, iniciativa composta por mais de 200 cientistas e pesquisadores da Amazônia, lançou seu primeiro relatório durante a COP26 e pediu o embargo do desmatamento de áreas críticas da Amazônia e a garantia de direitos dos povos indígenas.
Mais do que comentar a importância e o impacto de estudos científicos, o reconhecimento da ONU e quetais, diversos entrevistados estavam interessados em apontar o enorme crescimento de estudantes indígenas nas universidades e o número cada vez maior e mais importante de dissertações em diferentes campos como uma das principais novidades da última década. Em 2018, eram 57.706 indígenas matriculados em universidades no país, um crescimento de 695% em relação a 2010.
Outro destaque foram os novos cursos e programas voltados aos saberes tradicionais e experiências de ensino e pesquisa pluriepistêmica e não-hegemônicos que vêm sendo estabelecidos nas universidades, como o Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Além disso, diversas lideranças e artistas têm recebido título de notório saber, como Sueli Maxacali, Ailton Krenak e Babau Tupinambá. Davi Kopenawa foi eleito membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC).
Ainda que o contexto político seja completamente desfavorável, os juristas destacaram que faltam estudos sobre a realidade indígena nos territórios e de laudos antropológicos para processos de demarcação de territórios indígenas, um trabalho que poderia avançar em parceria com as universidades. “Esse é um dos temas mais urgentes do país há tempos."
Além da agenda climática e das cosmologias indígenas, o tema da alimentação foi o mais comentado, visto com maior potencial de conectar a população não indígena. Os sistemas alimentares; a soberania alimentar; a agroecologia; a agricultura regenerativa; e a contribuição da produção de alimentos por povos tradicionais foram descritos como assuntos que devem ganhar ainda mais atenção nos próximos anos.
Restauração florestal, pagamento por serviços ambientais, índices ESG, relação clima-floresta-recursos hídricos, cadeias e financiadores globais de desmatamento, resiliência e justiça climática, economia do bem viver e os bens comuns, justiça de transição e reparação histórica e a abordagem transfronteiriça desses assuntos foram apontados como outros temas emergentes.
Os públicos não engajados aspiram por circulação de “informações de boa qualidade”. Dentre eles, os economistas foram os que mais demandaram estudos acadêmicos, relatórios de instituições e fontes mais variadas de informação. Os jornalistas regionais valorizam a produção de universidades e institutos locais e lamentam que não tenham alcance em todo o Brasil.
“No momento, não importa a qualidade do estudo produzido. A gente está em um país negacionista da ciência.”
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“Os povos indígenas e tribais são os melhores guardiões das florestas da América Latina e do Caribe. As taxas de desmatamento na América Latina e no Caribe são significativamente mais baixas em territórios indígenas e de comunidades tradicionais onde os governos reconhecem formalmente os direitos territoriais coletivos”, conclui e detalha um relatório lançado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) em 2021, elaborado com base em mais de 300 estudos publicados nas últimas duas décadas.
Os indígenas e os públicos engajados/interessados entrevistados para a pesquisa foram convidados a comentar sobre a relevância e o impacto desses estudos e de outros no Brasil na última década. Entre os formadores de opinião de públicos não engajados, buscamos identificar se conheciam esses dados e pesquisas.
Muitas outras questões surgiram durante as entrevistas, como o amplo conhecimento científico no Brasil a respeito de saberes dos povos indígenas, especialmente os da Amazônia; os esforços mais recentes para reuni-los e sintetizá-los, muitos ainda circunscritos à academia e voltados a elaborar propostas para uma Amazônia sustentável; a regularização fundiária e a demarcação de terras indígenas como uma agenda há muito urgente do país; as iniciativas, os caminhos e os desafios para incorporar conhecimentos indígenas como parte do que hoje é considerado e aceito pela ciência ocidental; a ‘revolução silenciosa’ das cotas para estudantes indígenas nas universidades.
Uma parcela dos entrevistados destacou e reconheceu a atenção e o espaço que começaram a ser dados aos povos indígenas nas conferências climáticas, no Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), na FAO e em outros órgãos e fóruns internacionais como resultado de uma sucessão de pesquisas, artigos científicos e relatórios de ONGs produzidos nas últimas décadas.
Legenda: Coletiva de Imprensa do lançamento do estudo "Povos indígenas e tribais e a governança florestal na América Latina e no Caribe"
Crédito: FAO
Importantes, super importantes, importantíssimos
Apesar das ressalvas, a maioria de entrevistados engajados/interessados de diferentes segmentos descreveu os estudos como “fundamentais”, “relevantes” e “importantes”, de longe, o adjetivo mais utilizado.
Em 2019, houve o reconhecimento pelo IPCC de que proteger os direitos de povos indígenas e comunidades locais é uma solução crítica para a crise climática. À época, organizações indígenas e de comunidades locais de 42 países publicaram uma declaração na qual afirmavam que o reconhecimento fazia parte de um conjunto cada vez maior de evidências que mostram que garantir os direitos às terras aos povos das florestas é essencial como parte das soluções climáticas.
Legenda: IPCC reconhece o papel dos povos indígenas e comunidades locais no combate às mudanças climáticas
Crédito: If Not Us Then Who
Pouco difundidos. É preciso bater na tecla, incansavelmente!
Mais do que os estudos elaborados por instituições internacionais, foram os trabalhos de organizações brasileiras os mais mencionados espontaneamente por públicos engajados. Entre estudos específicos, os do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) foram os mais lembrados, especialmente por cientistas e sociedade civil, como os que mostram porque as terras indígenas são importantes barreiras ao desmatamento e reservas de carbono na Amazônia. A maior parte dos indígenas não mencionou nomes de instituições, ou pesquisas específicas.
Carlos Nobre, Antônio Nobre, Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Neves foram os nomes mais lembrados, especialmente pelos próprios cientistas, jornalistas da grande imprensa e ONGs ambientalistas; e Eduardo Viveiros de Castro, por jornalistas e entrevistados do campo e da cultura.
Crédito: Reprodução facebook
Ainda que considerados marcos importantes e influentes entre nichos específicos, a maior parte de entrevistados de públicos interessados/engajados, incluindo os cientistas e os indígenas, afirmaram que esses estudos ainda não foram devidamente divulgados, ou considerados para a formulação de políticas públicas no país. Um pequeno número se lembrou de estudos que deram respaldo à formulação de políticas públicas como a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC) e a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI).
Crédito: SBPC
Essa percepção foi ainda mais forte entre os públicos interessados, mas não engajados.
Essa percepção foi confirmada por públicos não engajados. Ainda que muitos reconheçam a conexão dos povos indígenas, essa associação não foi mencionada espontaneamente com frequência nas entrevistas, com exceção de formuladores de opinião mais próximos à agenda ambiental.
Uma outra barreira apontada por entrevistados engajados e interessados foi a linguagem dos estudos e dos cientistas, considerada muito técnica e elitista.
Legenda: Webinário O que podemos aprender com o conhecimento ancestral indígena?
Crédito: Ipam Amazônia
Alguns entrevistados, em particular jornalistas, reconheceram esforços de cientistas em busca de melhor comunicação com a sociedade.
subcapítulo
Rios voadores, considerado um exemplo de sucesso
Ainda que não especificamente sobre povos indígenas e comunidades tradicionais, o fenômeno conhecido como rios voadores foi o exemplo mais citado de projeto com ampla divulgação científica, hoje uma referência para a imprensa e diferentes públicos.
O Projeto Rios Voadores teve início em 2007 e foi idealizado a partir de longas conversas entre o aviador Gérard Moss (falecido em 2022) e o pesquisador do Inpe Antonio Nobre, e subsequente colaboração de Eneas Salati e outros cientistas envolvidos no tema como José Marengo, Pedro Dias e Reinaldo Victoria.
O projeto contou com patrocínio da Petrobras, por anos, para atividades de divulgação e de educação ambiental que incluíram expedições, produção de materiais e atividades em escolas ao redor do país.
Segundo o cientista Antonio Nobre, a divulgação foi um sucesso porque foi empacotada em uma narrativa gostosa, impressionante, que trata a audiência como uma criança empolgada, interessada em aprender mais.
Legenda: Antonio Donato Nobre mostra que tem um rio em cima de nós Crédito: TEDXAmazônia
Participação como autores, produtores de conhecimento
A participação efetiva em projetos de pesquisas; a inserção do conhecimento tradicional como conhecimento científico e tecnologia; e a necessidade de novas formas de (co) produção de conhecimento foram descritas como questões das mais urgentes para alguns dos indígenas e cientistas ouvidos, eventualmente apontadas também por entrevistados de outros segmentos.
Um pé na aldeia outro na universidade
Mais do que comentar a importância e o impacto de estudos científicos, o reconhecimento da ONU e quetais, diversos entrevistados estavam interessados em apontar o enorme crescimento de estudantes indígenas nas universidades e as mudanças que vêm sendo geradas por esse fenômeno como uma das novidades mais significativas da última década no Brasil.
De acordo com o Censo da Educação Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), eram 57.706 indígenas matriculados em universidades no país em 2018, um crescimento de 695% em relação a 2010. Desses, 42.256 estavam matriculados em instituições privadas.
A maior parte dos entrevistados atribuiu o aumento do número de estudantes à lei de cotas nas universidades, em vigor desde 2012, alguns citando políticas anteriores, como o Programa Universidade para Todos (Prouni) do Ministério da Educação, e políticas específicas, como as políticas afirmativas da Universidade Estadual do Mato Grosso (Unemat), que há 20 anos tem um mestrado específico para os povos indígenas.
Alguns dos acadêmicos destacaram que o ingresso e as pesquisas dos indígenas têm levado ao questionamento e a mudanças de práticas estabelecidas em diferentes campos de conhecimento.
Já os indígenas compartilharam especificidades de serem eles à frente das pesquisas, e os debates e demandas pela descolonização dos espaços e a incorporação dos conhecimentos indígenas em estruturas que ainda devem se tornar mais inclusivas e acolhedoras.
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Brasil, um país multilíngue
Poucos entrevistados, em sua maioria antropólogos, destacaram a importância das línguas indígenas para os conhecimentos tradicionais. Um pequeno número de representantes de ONGs e doadores internacionais citou estudos sobre a correlação entre conservação ambiental e a diversidade biocultural e a crescente preocupação com a erosão das línguas indígenas.
O Brasil não conta com um mapeamento sobre o número de línguas faladas no país. Segundo o Censo 2010, baseado em autoidentificação, são 274 as línguas indígenas faladas no país, número contestado por especialistas.
Ainda assim, estima-se que existam hoje um total de 154 línguas indígenas faladas no Brasil, segundo a reportagem sobre o livro “Línguas indígenas: tradição, universais e diversidade”, de Luciana Storto, professora do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).
Uma nova pesquisa coordenada pelo Grupo de Estudos, Mediações, Discursos e Sociedades Amazônicas da Universidade Federal do Pará (UFPA) identificou 34 línguas indígenas faladas no Pará. Por meio do projeto, foi elaborado um documentário e um mapa interativo com a localização de cada terra indígena e com informações sobre o número de falantes de cada língua.
Crédito: Grupo Gedai
Na segunda parte do sumário executivo do Painel Científico para a Amazônia (SPA), sobre a Presença Humana e Diversidade Sociocultural na Amazônia, foi ressaltado que cerca de 50 das 125 línguas isoladas do mundo são encontradas na Amazônia. “Com mais de 10 línguas isoladas nas cabeceiras dos rios Guaporé e Mamoré, região do tamanho da Alemanha, o sudoeste da Amazônia abriga uma das maiores incidências de isolados linguísticos do planeta.”
Em uma pesquisa da Universidade de Zurique, cientistas analisaram 3.597 espécies vegetais e 12.495 usos medicinais associados a 236 línguas indígenas na América do Norte, Nova Guiné e noroeste da Amazônia e estimaram que 75% dos usos de plantas medicinais no mundo são conhecidos em apenas um idioma.
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) estima que 43% das cerca de 6.000 línguas faladas no mundo estão ameaçadas de extinção e para aumentar a consciência sobre questões linguísticas decretou esta a Década Internacional das Línguas Indígenas.
Depois de quatro anos de articulação, reuniões e mobilização, foi lançada, em agosto de 2020, a Articulação Brasileira de Indígenas Antropóloges (ABIA), com o objetivo de “construir uma antropologia desde as diversas ciências indígenas”.
Crédito: InfoAmazonia
Em 2021, como parte das comemorações dos 10 anos das políticas afirmativas do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/UFAM), foi lançada pela Editora Mil Folhas a coletânea “Paneiro de Saberes – Transbordando Reflexividades Indígenas”, um livro composto por artigos de antropólogos e antropólogas indígenas.
Outro destaque dado às universidades brasileiras durante as entrevistas foram sobre os cursos, programas e espaços voltados aos saberes tradicionais e experiências de ensino e pesquisa pluriepistêmica e não-hegemônicos, como o Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais, criado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), instituído em 2015; e a Cátedra Kaapora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que tem por finalidade a realização de atividades de extensão, ensino e pesquisa voltadas à multiplicidade de modos de viver, de conhecer e de formas expressivas indígenas, de populações tradicionais, de matriz afro e outras coletividades não-hegemônicas ou contra-hegemônicas em relação à produção de conhecimentos na universidade.
Adicionalmente, diversas lideranças e artistas indígenas passaram a receber o título de notório saber e doutor honoris causa, como a escritora Eliane Potiguara, a cineasta Sueli Maxakali, o artista Isael Maxakali, o agricultor do Assentamento Terra Vista (BA) da Teia dos Povos Joelson Ferreira de Oliveira e o cacique Babau Tupinambá.
Também em 2021, Ailton Krenak, que havia recebido o título de honoris causa da Universidade Federal de Juiz de Fora em 2016, recebeu o título de doutor honoris causa da UnB.
Além disso, o xamã Davi Kopenawa foi eleito membro da Academia Brasileira de Ciências, em gesto de reconhecimento por sua “contribuição na expansão do conhecimento científico, das possibilidades da ciência no país e pela valorização da cultura indígena e de sabedorias ancestrais”.
Crédito: Academia Brasileira de Ciências (ABC)
Entre os entrevistados da população geral e uma minoria dos formadores de opinião não engajados, há uma percepção de que ao acessarem a educação superior e adquirirem bens materiais, os indígenas “mudam” e “deixam de ser índios”. Apenas entre uma minoria, há um entendimento de que os povos indígenas podem incorporar os códigos da sociedade brasileira e formar pontes, sem perder sua identidade.
Ainda que os estudantes indígenas enfrentem diversos desafios na universidade, a dificuldade financeira foi apresentada em entrevistas como a principal delas. E, nos últimos anos, tem diminuído o número de estudantes indígenas atendidos pelo Bolsa Permanência – auxílio financeiro oferecido pelo Ministério da Educação aos estudantes matriculados em instituições federais. Em uma audiência pública na Câmara dos Deputados em outubro de 2021 para discutir o assunto, o estudante Kâhu Pataxó afirmou que a restrição de acesso ao programa prejudica não apenas a continuidade dos cursos, mas o ingresso de novos alunos indígenas.
Regularização fundiária, tema dos mais urgentes do país há tempos
Ainda que o contexto político seja completamente desfavorável, os juristas destacaram que faltam estudos sobre a realidade indígena nos territórios e laudos antropológicos para processos de demarcação de territórios indígenas.
“Precisamos de estudos para priorizar, avançar com a regularização fundiária de territórios tradicionais, mover o que está parado, quando for possível. Esse é um dos temas mais urgentes do país há tempos."
"A Amazônia é um buraco negro, por isso não conseguimos proteger. Precisamos unificar as bases de dados fundiários, e já tivemos iniciativas importantes para isso no país."
“Faltam laudos antropológicos, a Funai não dá conta. Precisamos de parcerias com as universidades públicas para avançar nisso.”
Alguns doadores e ONGs internacionais também lembraram que há cada vez mais grupos e organizações trabalhando como o mapeamento de territórios indígenas ao redor do mundo, especialmente na América Latina, e em projetos pelo reconhecimento do direito territorial de povos indígenas.
Um levantamento do Ministério Público Federal (MPF), com dados de outubro de 2021, revela a existência de quase 10 mil propriedades rurais privadas sobrepostas a terras indígenas no país.
Iniciativas pioneiras de autocartografia dos povos e comunidades tradicionais, como o projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) foram muito pouco citadas.
Crédito: Pós-Crítica UNEB
Certamente a partir de um ponto de vista bastante distinto, representantes do agronegócio também destacaram a regularização fundiária como uma prioridade.
Propostas para a Amazônia, bioeconomia como o termo da vez
O Painel Científico para a Amazônia (SPA, sigla em inglês) e Amazônia 4.0 foram os projetos mais citados entre os que “tentam inovar na participação e inclusão de povos tradicionais na elaboração de caminhos sustentáveis para o bioma” por diversos segmentos dos públicos engajados/interessados.
O SPA, uma iniciativa inédita composta por mais de 200 cientistas e pesquisadores da Amazônia, incluindo cientistas indígenas, lançou seu primeiro relatório durante a COP26.
Definido como “o mais detalhado, abrangente, e holístico documento de seu tipo sobre a Bacia Amazônica”, o SPA recomenda, entre outros, o embargo imediato para desmatamento de áreas críticas da Amazônia; a restauração de áreas degradadas; uma série de medidas de estímulo à bioeconomia; e defende a garantia de direitos territoriais e de autodeterminação dos povos indígenas e das comunidades locais como parte das estratégias mais importantes para a proteção de biodiversidade e de paisagens bioculturais da Amazônia.
O Amazônia 4.0 foi apresentado como o projeto que tem “recebido atenção da imprensa”, "construído em parceria com atores fora da academia”, e que “já está saindo do papel, com as primeiras biofábricas chegando ao bioma”.
Alguns cientistas, representantes da sociedade civil e indígenas levantaram ponderações sobre o conceito de bioeconomia que vem sendo adotado no Brasil, especialmente o que vinha sendo preconizado pelo governo, deixando a impressão de que o assunto ainda precisa ser mais amplamente discutido no país. Por outro lado, houve também críticas ao que foi descrito como falta de ambição por parte da sociedade civil para se contrapor à economia da destruição.
No artigo “Os Desafios para um Modelo Realmente Sustentável e Inovador de Desenvolvimento da Amazônia", os cientistas Helder Queiroz e Mercedes Bustamante afirmam: “em vez de promover uma bioeconomia socialmente cega, é preciso reconhecer e valorizar as abordagens bioculturais dos povos tradicionais e comunidades locais que, ao longo de tantos anos, desenvolveram um profundo conhecimento sobre o meio ambiente e a biodiversidade em seus territórios. É destas populações que devem brotar os protagonistas de suas próprias bioeconomias, os empreendedores e os principais beneficiários”.
IPCC da biodiversidade, floresta habitada, práticas milenares
A Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), chamada de “IPCC da biodiversidade”, foi descrita como uma iniciativa inovadora, ao incorporar os conceitos de natureza dos povos tradicionais e os conhecimentos milenares indígenas como centrais ao processo de conservação e restauração do planeta.
subcapítulo
Natureza, ecossistema, mãe-terra, Pachamama
"Chamada de “IPCC da biodiversidade”, a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) foi criada em 2012 para subsidiar com conhecimento científico as tomadas de decisões que envolvam a conservação da biodiversidade, bem-estar humano e desenvolvimento sustentável.
Em 2019, a plataforma divulgou o relatório de avaliação global sobre o declínio da biodiversidade no planeta e cenários possíveis para as próximas décadas, compilado por 145 autores especialistas de 50 países, com contribuições de outros 310 autores, resultado de três anos de trabalho.
O relatório, descrito como uma fotografia ambiental do planeta, ganhou bastante visibilidade na imprensa à época, principalmente uma de suas conclusões: um milhão de espécies vegetais e animais estão agora ameaçadas de extinção.
Crédito: WWF International
Em junho de 2021, cientistas do IPCC e da IPBES, em uma colaboração inédita, lançaram um relatório apontando que as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade estão intimamente interligadas e só serão solucionadas se forem abordadas de forma conjunta.
Assim como o reconhecimento do IPCC, a IPBES ainda é bastante desconhecida no Brasil, apesar de ter sido descrita por alguns dos cientistas ouvidos como uma das grandes novidades da última década.
Com base na revisão de cerca de 15 mil fontes científicas e governamentais, o relatório global da IPBES buscou incorporar, pela primeira vez nessa escala, conhecimentos indígenas e locais e desenvolver mecanismos para a integração do conhecimento indígena, tradicional e local no aperfeiçoamento da governança global da biodiversidade e dos chamados serviços ecossistêmicos.
Mais recentemente, em setembro de 2021, a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) aprovou em assembleia uma moção que pede a proteção de 80% da bacia amazônica até 2025, apresentada pela Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA), da qual a COIAB faz parte. A COICA participou pela primeira vez como membro titular do congresso, o que foi considerado um outro avanço em termos da incorporação de demandas dos povos indígenas em espaços conservacionistas.
O braço brasileiro da IPBES, a Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES), lançou 1º Diagnóstico Brasileiro de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos em 2019, no qual detalha, por exemplo, a contribuição de povos indígenas e de comunidades tradicionais para a agrobiodiversidade e para o delineamento de paisagens no território brasileiro, trabalho com muito pouca repercussão no país.
Legenda: O cientista Fabio Scarano explica o que é a Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmico
Sob coordenação de Manuela Carneiro da Cunha, Cristina Adams e Sônia Magalhães, os primeiros resultados do projeto, que incluiu em seu escopo pesquisas interculturais com povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, foram lançados em 2021.
Os indígenas como “fazedores de florestas”, as “práticas milenares indígenas", “a floresta habitada”, “as tecnologias indígenas", os “avanços da arqueologia amazônica” e a “Amazônia como bem sociocultural” foram descritos, aliás, como avanços dos mais importantes da ciência nas últimas décadas, ainda pouco conhecidos e a serem melhor estudados.
Em 2021, a revista científica Frontiers produziu o especial “Aprimorando a regeneração natural para restaurar paisagens”, no qual foi publicado um artigo dos pesquisadores indígenas do Xingu Yakuna Ullillo Ikpeng e Tariaiup Kayabi, junto com Cristina Adams, Marcus Schmidt, Rosely Sanches e Kátia Ono sobre os conhecimentos de povos indígenas para evitar a degradação das terras agrícolas no Território Indígena do Xingu ou restaurar terras que já estejam degradadas.
Há também crescente interesse pelas práticas milenares dos povos indígenas, especialmente no uso do fogo, não somente no Brasil, mas em países como Austrália e Estados Unidos.
Por outro lado, os impactos das mudanças climáticas nos territórios indígenas foram assuntos que apareceram em algumas entrevistas com os indígenas e também descritos como temas ainda pouco estudados, ainda que seus impactos já sejam sentidos e notados por diversos povos.
Além da agenda climática e das cosmologias indígenas, o tema da alimentação foi o mais comentado, visto com maior potencial de conectar a população não indígena. Os sistemas alimentares; a soberania alimentar; a agroecologia; a agricultura regenerativa; e a contribuição da produção de alimentos por povos tradicionais foram descritos como assuntos que devem ganhar ainda mais atenção nos próximos anos.
Legenda: Webinário: O sistema alimentar brasileiro e suas contradições atuais
Crédito: Ibirapitanga
Os povos indígenas na ciência política e em outros temas emergentes
Alguns representantes da sociedade civil disseram ser importante dar continuidade a estudos que expõem quem são os donos de terras agrícolas e os financiadores do mercado de terras no Brasil, as suas conexões políticas, assim como os subsídios dados ao agronegócio e a falta de transparência sobre o uso desses recursos no país.
Não só porque a deputada Joênia Wapichana esteve entre as principais vozes da última década, assim como a sua posse entre as principais imagens e momentos-marco desse período, mas também porque houve um recorde de vereadores indígenas eleitos nas últimas eleições, achamos relevante incluir cientistas políticos entre os segmentos chave a serem ouvidos.
Tivemos, entretanto, muita dificuldade em acessar interessados em conceder entrevistas para a pesquisa e acabamos descobrindo que esse é um campo de estudo ainda a ser desenvolvido no país.
Em outubro de 2021, a Associação Brasileira de Ciência Política lançou o projeto Ciência Política e Povos Indígenas, um repositório de textos acadêmicos sobre as relações entre a ciência política e povos indígenas, coordenado por Leonardo Barros, professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Restauração florestal, pagamento por serviços ambientais, regulamentação do mercado de carbono, índices ESG, relação clima-floresta-recursos hídricos, cadeias e financiadores globais de desmatamento, economia do bem viver e os bens comuns, resiliência e justiça climática, justiça de transição e reparação histórica e a abordagem transfronteiriça desses assuntos foram outros temas identificados como emergentes.
Os públicos não engajados sugeriram ser necessária a circulação de “informações de boa qualidade”. Dentre eles, os economistas foram os que mais demandaram estudos acadêmicos, relatórios de instituições e fontes mais variadas de informação. Os jornalistas da região Norte valorizaram a produção de universidades e institutos locais e lamentaram que não sejam divulgadas em todo o Brasil.
Ciência pra quê e pra quem?
Diversos entrevistados, em particular os interessados, mas não engajados, destacaram justamente a urgência e a escassez de propostas que ofereçam caminhos para o desenvolvimento do país, respostas práticas para a melhoria da vida da população que votou em Bolsonaro, para uma parcela da população não envolvida com a agenda ambiental, ou que hoje vive do desmatamento.
Na reportagem “Sem Terra de Direita”, parte do especial “Amazônia Sob Bolsonaro”, Fabiano Maisonnave descreve a situação de Rondônia: “no lugar de movimentos sociais, principalmente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), contrários à invasão de terras indígenas, entraram associações desconhecidas e recém-criadas, assessoradas por advogados e escritórios de georreferenciamento, com envolvimento de fazendeiros da região”.
Crédito: Folha de São Paulo
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Falsas controvérsias e negacionismo no poder
Uma outra questão frequentemente levantada por entrevistados foi sobre a falta de discussão e uso dos achados de estudos - mesmo antes do atual governo - por formuladores de políticas públicas e tomadores de decisão, mesmo nos casos em que esses financiam os projetos de pesquisa.
Menções à precariedade das instituições científicas; à falta de orçamento à altura de um país de dimensão continental e megadiverso como o Brasil; e o foco dos investimentos em ciência tecnológica foram críticas comuns e não restritas ao atual governo, e a esse governo sendo atribuídos o ataque e o boicote contínuo à ciência.
Além disso, um pequeno número de entrevistados, especialmente da academia e da sociedade civil, compartilhou preocupação e indignação com o que chamaram de pseudociência singular incorporadas e fortalecidas às narrativas de Jair Bolsonaro e aliados.
Um grupo de 12 pesquisadores publicou um artigo desmentindo teses do engenheiro agrônomo Evaristo de Miranda, da Embrapa, usadas para embasar políticas antiambientais do governo:
"Em um período de cerca de três décadas, o dr. Miranda e seu grupo se opuseram sistematicamente ao consenso científico para contribuir com os movimentos políticos que visam adiar a ação ou desmantelar as principais políticas de conservação.”
O artigo identificou impactos em diferentes agendas, como Código Florestal, aplicação das multas por crimes ambientais e terras indígenas, cujas demandas por demarcações, por exemplo, eram divulgadas como excedendo o tamanho do território nacional.
Apesar disso tudo, ou talvez justamente por isso, integrantes da sociedade civil fizeram questão de ressaltar que dados e informações têm sido fundamentais para pressionar e denunciar o atual governo no Brasil, junto a instituições como o Supremo Tribunal Federal, o Ministério Público Federal e o Conselho Nacional de Justiça, assim como, internacionalmente, as denúncias no Tribunal Penal Internacional contra Bolsonaro de crime contra a humanidade.
Crédito: TV Justiça
Um pequeno número de cientistas falou também sobre o temor e a existência de apagamento de dados e a importância de projetos para preservá-los.
"Há um desmonte geral. Muitos documentos, registros começaram a sumir.”