Principais narrativas

Capítulo 13

Principais narrativas

pra você que tá sem tempo...

Os entrevistados engajados/interessados foram convidados a discorrer sobre as principais narrativas dos povos indígenas e pelo fortalecimento de seus direitos para incidência política no Brasil. Para os entrevistados de públicos não engajados, a pergunta foi sobre suas percepções e seus sentimentos em relação aos povos indígenas. 

As respostas foram variadas e incluíram de “narrativas produzidas pelos próprios indígenas” e "ninguém fala no nosso lugar” como as grandes novidades, “houve pouca mudança na última década", aos que lamentaram, dizendo que as “contranarrativas estão hoje muito fortalecidas”. 

Ainda assim, povos indígenas como “protetores do meio ambiente”, “guardiões das florestas”, “essenciais no combate às mudanças climáticas” foi a principal narrativa da última década para a maior parte dos entrevistados de públicos engajados/interessados. A narrativa climático-ambiental emergiu com força no cenário global, passando a ser adotada pelo movimento indígena e por uma parte da sociedade civil no Brasil e no exterior. 

Entre os públicos não engajados, a conexão dos povos indígenas com o meio ambiente foi reconhecida pelos formadores de opinião e pela parcela da população geral mais empática com a causa. Nem sempre, porém, esse reconhecimento foi manifestado espontaneamente, ou apontado como uma contribuição importante dos povos indígenas.

As narrativas sobre os modos de vida, as subjetividades e as cosmologias indígenas foram apresentadas como uma “evolução”, “aprofundamento”, da que apresenta os povos indígenas como “guardiões das florestas”. Ainda que hoje estejam circunscritas a uma parte da elite cultural do país, essas narrativas foram apresentadas como as mais potentes como “contraponto à crise climática e do capitalismo”, para "atiçar e provocar nosso imaginário” e para "necessários processos de cura e encantamento”. 

Os estudos que demonstram que as florestas vêm sendo manejadas há milênios por povos indígenas foram considerados ainda pouco conhecidos e muito importantes para enriquecer narrativas que vêm recontando a história do que hoje chamamos Brasil.

O orgulho identitário, a valorização e a conexão com ancestralidades e os discursos anticoloniais foram apontados como narrativas emergentes, que devem ganhar ainda mais visibilidade e serem fortalecidos nos próximos anos. Essas são narrativas que questionam e atualizam os debates sobre a identidade brasileira e que têm gerado crescente interesse da indústria cultural e de entretenimento e também do mercado publicitário. 

A principal narrativa adotada pelos povos indígenas é a dos direitos, especialmente do direito à terra, que tem como alicerce a Constituição de 1988. As narrativas dos direitos originários ganharam mais visibilidade no Brasil na última década devido “à maior organização e conscientização dos povos indígenas sobre seus direitos” e “às ameaças claras que se impuseram”. Por outro lado, o direito à terra foi o tema mais polêmico das entrevistas com os públicos não engajados, em torno do qual foram apresentados os argumentos mais críticos aos povos indígenas.

No Brasil, narrativas sobre “uso sustentável dos territórios indígenas”, “bioeconomia” e “economia da floresta” foram qualificadas como extremamente importantes por entrevistados de públicos engajados e interessados e valorizadas por formadores de opinião de públicos não engajados, especialmente empresários. Essas foram descritas como as mais urgentes em contraponto às narrativas do governo Jair Bolsonaro e ao modelo de desenvolvimento predatório atualmente em curso na Amazônia.

A narrativa dos defensores ambientais, povos indígenas e comunidades tradicionais lutando não apenas por sua sobrevivência, mas na linha de frente pela proteção do planeta, com suas vidas e seus territórios sob ataque, foi apresentada como muito potente, especialmente no exterior. 

Por conta do crescente número de iniciativas em resposta à crise climática, como investidores e empresas se comprometendo com desmatamento zero e regulações do comércio internacional de commodities em curso na União Europeia e no Reino Unido, narrativas sobre violações de direitos, os impactos socioambientais e o aumento da vulnerabilidade dos territórios indígenas foram apontadas como importantes de serem fortalecidas. No Brasil, foi sugerido ampliar, aprofundar e diversificar as formas de divulgação da quantidade de terra degradada e sem uso no país versus a expansão da fronteira agrícola, ampliar os dados e a compreensão sobre os subsídios ao agronegócio, sobre a concentração de terras no país. 

Entrevistados interessados, mas não engajados, criticaram a falta de contato, diálogo e disputa com campos opositores, outros o debate estar “muito ligado e circunscrito a pautas identitárias” e não a “pautas mais universais, que mobilizam a sociedade brasileira como um todo”.

Um número considerável de entrevistados manifestou preocupação com as contranarrativas do governo Bolsonaro e aliados. “Nos últimos dez anos, vejo como um período de retrocesso na opinião pública no Brasil.” “Com a brutalidade e a violência das posições da extrema direita veio não só a ideia de que índio tem terra demais, como uma depreciação das populações indígenas explicitamente formulada pelo presidente da República.”

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Os entrevistados engajados/interessados foram convidados a falar sobre as principais narrativas dos povos indígenas e pelo fortalecimento de seus direitos para incidência política no Brasil na última década. Para os entrevistados de públicos não engajados, a pergunta foi sobre as suas percepções e seus sentimentos em relação aos povos indígenas. 

“Não existe uma narrativa única", pontuaram alguns dos entrevistados logo no início das entrevistas. E, justamente por isso, as respostas foram muito diversas. 

As respostas incluíram de “narrativas produzidas pelos próprios indígenas” e "ninguém fala no nosso lugar” como as grandes novidades, “houve pouca mudança na última década", aos que lamentaram, e não foram poucos, o fato das “contranarrativas estarem hoje muito fortalecidas”. 

“Nos últimos anos, o mais potente foi que os próprios indígenas se tornaram autores das suas narrativas no nosso mundo – porque, no mundo deles, eles já são autores há milênios."
(Artista)
“As grandes clivagens que dividem as opiniões sobre o tema ainda não desapareceram. Você pode pegar pesquisas que falam sobre a importância das terras indígenas ou das florestas, mas essas pesquisas sempre fazem a pergunta óbvia ‘você é a favor da preservação da floresta?’ e todo mundo responde ‘sim!’. Eu diria que as narrativas continuam muito marcadas por disjunções de percepção que vão desde o Bolsonaro falando que não vai demarcar nenhum centímetro de terra, ou dizendo que quilombola pesa arrobas, com uma plateia de gente rica que o aplaude, até o fato de que, nas regiões de fronteira, nada mudou, aliás, piorou.”
(ONG nacional)
“A narrativa é de sobrevivência, de tentar fazer valer sua existência diante de uma realidade de exclusão.”
(Ativista)
“Não tem disputa de narrativa, porque esse é um governo autoritário, né? Eu diria que as pessoas estão situadas nesse campo da emancipação dos direitos e tal, mas estão lutando para as suas narrativas não morrerem e não serem totalmente atropeladas por um negacionismo generalizado.”
(Antropólogo)

Ainda assim, os povos indígenas como “protetores do meio ambiente”, “guardiões das florestas”, “essenciais no combate às mudanças climáticas”, foi a narrativa mais citada pela maior parte dos entrevistados dos públicos engajados/interessados. 

Apoiada principalmente em evidências científicas, a narrativa climático-ambiental emergiu com força no cenário global, passando a ser adotada pelo movimento indígena e por uma parte da sociedade civil no Brasil.  

“Há uma série de narrativas políticas, desde a época da Colônia, do Império e da República. Em termos contemporâneos, a partir da década de 1990, houve a fusão do discurso ambientalista com o dos direitos humanos. É ali que começa a se construir essa ideia do indígena como protetor do meio ambiente, hoje muito fortalecida.”
(Cientista político)
“A primeira narrativa que me vem à mente é a dos povos tradicionais indígenas como defensores do meio ambiente. Essa coisa ‘nós somos os defensores das florestas' foi uma construção coletiva que se espalhou.”
(Jornalista)
“Talvez a grande inovação esteja em apresentar os grupos indígenas como centrais para debates sobre clima, proteção da biodiversidade. Por muito tempo, os grupos indígenas foram apresentados como o ‘outro’. Em casos extremos, mas bastante comuns, como marginais ou algo do passado e, em casos realmente extremos, quase subumanos. E isso, é claro, justificou o colonialismo e foi usado para explorá-los. No caso do Brasil, durante a ditadura militar, divulgavam que a Amazônia era uma terra sem povo para um povo sem terra, como se não existissem ali os indígenas.”
(Correspondente international)
Crédito: Choose Earth
“O grande avanço dessa década foi a narrativa dos territórios indígenas como fundamentais para o combate às mudanças climáticas. Mais gente hoje entende que as florestas em áreas protegidas e nas terras indígenas são fundamentais para evitar ou adiar o colapso climático. Com isso, o direito à terra deixa de ser só parte daquilo que está previsto na Constituição, mas passa a fazer parte da lógica associada ao equilíbrio climático, ao estoque de carbono, aos serviços ambientais.”
(Jornalista)
“Em primeiro lugar, a narrativa sobre a importância dos territórios na crise climática é um turning point, ela dialoga com outras questões que são objetivas para a sociedade e abre uma frente nova de entendimento da questão. Depois, acho que vem a narrativa das ameaças aos direitos, do ‘estão nos matando, é o nosso sangue, nossa sobrevivência’, mais localizada, mas que ganha força no diálogo internacional nos últimos anos.” 
(ONG nacional)
“Me inquieta um pouco eles trazerem sempre a mesma mensagem, sempre dizerem ‘os povos indígenas são os que têm maior capacidade de conservar‘ (...) e  isso não virar a página. Acho fundamental, mas fico com a dúvida, que talvez seja a de muita gente, e daí, o que se faz com isso?”
(ONG nacional)
“Houve uma mudança significativa. Não apenas as florestas, mas os povos indígenas passaram a ser vistos com valor real na cena climática internacional, pessoas com direitos, opiniões e pensamentos sobre o mundo. E eles agora estão demandando participação na tomada de decisão nas estratégias de combate à crise climática.”
(Comunicador internacional)

Entre os públicos não engajados, a conexão dos povos indígenas com o meio ambiente é, em geral, reconhecida pelos formadores de opinião e a população geral mais empática com a causa. Nem sempre, porém, esse reconhecimento foi manifestado espontaneamente ou apontado como uma contribuição importante dos povos indígenas. A relação distinta e profunda dos povos indígenas com o meio ambiente foi citada espontaneamente apenas por quem já está envolvido ou interessado no tema da sustentabilidade. Perguntados sobre o aumento do interesse internacional pelos povos tradicionais no Brasil, a maioria não concordou – creditando tal interesse a preocupações com o meio ambiente.

subcapítulo

Guardiões das florestas

Perguntamos aos públicos engajados/interessados se gostavam ou não do uso do termo “guardiões das florestas” para descrever os povos indígenas e o porquê. 

Abaixo, um resumo das respostas, que foram bastante diversas e a maior parte com questionamentos ao uso do termo. 

A narrativa é boa se fizer sentido para eles…

“São eles que têm de dizer se essa é uma narrativa boa, ou não?“
(ONG nacional)
“A decisão é deles. Se essa narrativa não os deixa incomodados, acompanho". 
(Ativista)
“Eu gosto, mas isso tem que combinar com eles.”
(Cientista política)

Sim, porque…

“Quando dizemos ‘guardiões’, parece que são duas coisas separadas. Mas eu gosto do termo porque entendo que estamos guardando a nós mesmos. Sei que muita gente não gosta, mas eu gosto e adotei.”
(Liderança indígena)
“Ótimo, muito importante. Narrativa fácil de entender, gera simpatia pelos índios. Uma forma de valorizá-los, ir contra o argumento de que ‘tem muita terra para pouco índio’.”
(Cineasta) 
“Super acertada, muito usada. Os povos indígenas têm essa coisa do modo de vida, das especificidades que eles têm, de habitarem os territórios mais preservados. Acho fundamental para a disputa narrativa, especialmente no contexto bolsonarista, onde eles são atacados, enquanto povos, identidades culturais.”
(Ativista)
“Ela é eficaz e não é falsa, ou meramente marqueteira, porque é verdade. Se existe hoje floresta é porque, durante milênios, eles conservaram essa floresta. Se existe floresta, é porque os indígenas plantaram essa floresta. A floresta é cultural. Que no Brasil se consiga ver os índios assim, é um avanço, porque me criei no Sul, onde os indígenas nem gente eram. Ainda existe uma ideia muito persistente de que povo indígena é como diz o Bolsonaro, quase humano. Então, acho que faz sentido adotar essa narrativa.”
(Jornalista)
“Me agrada muito, porque tem um apelo de público muito forte, que de fato corresponde, inclusive no mapa, cartograficamente. É uma comprovação científica e geográfica, cartográfica e tudo mais. Acho que também é uma associação que os próprios indígenas fazem, na medida que tem os guardiões da floresta, as guardas indígenas de territórios, sobretudo lá nos Guajajara.”
(Curadora)
“Acho que essa é uma forma mais fácil de fazer as pessoas compreenderem. Justamente porque a gente tem esse gap de um desconhecimento, acho que essa imagem do guardião da floresta ajuda, é uma imagem fácil. Quem é o indígena? É o cara que está protegendo essa área que é super importante. Eu acho que funciona. Seria interessante achar outras imagens como essa.”
(Jornalista)

Sim, mas…

“Acho que eles têm direito à terra, independentemente de serem guardiões. Como a agenda do meio ambiente está em voga, se os indígenas se colocam dessa forma, ganham atenção. Mas existem muitas etnias, muita diversidade.”
(Jornalista)
“Acho que é uma boa narrativa para os iniciados, os que têm alguma sensibilidade para as causas ambientais. Saindo da bolha, vejo essa coisa dos guardiões da floresta como uma coisa muito romântica, quase esotérica, que vê a floresta como algo fundamental, não materialmente falando.”
(Jurista)
“Os guardiões da floresta é uma imagem muito positiva, mas não dá o pulo do gato. Está todo mundo em pânico, procurando uma boia para não afogar. Se você fala que o índio é o guardião da floresta, isso atinge uma pequena minoria, mas a maioria não está nem aí. Hoje, você teria que dizer que eles são os guardiões da água da sua torneira.”
(Cineasta)
“Sim, mas é meio que esperar que eles façam algo por nós e dar a eles uma identidade baseada em nossas necessidades, e não nas deles.”
(Correspondente internacional)
“Ela é perigosa evidentemente porque é simplista. No atual momento, acho que é muito útil,  porque o Brasil está sofrendo represálias internacionais e prejuízo econômico por não proteger as florestas. Ela ajuda a gente a falar que esse contraste não é para os povos indígenas.”
(Doador nacional)
“Essa é uma narrativa que pegou. É uma narrativa que eles usam porque é o que eles são, mas não pode ser uma narrativa solta sem apoio, tem que ter uma manutenção dos seus direitos e tem que ter apoio financeiro pra isso.”
(ONG nacional)
“O risco dessa narrativa, às vezes, é colocá-los como prestadores de serviço, que eles teriam essa obrigação de fazer isso, que é quase que como um serviço para nós, para preservar a floresta pra nós. Acho que é uma narrativa válida, mas tem que tomar um pouco de cuidado para não perpetuar uma espécie de nobre selvagem ou algo assim.”
(Cientista)
“A ideia de vincular povos indígenas como guardiões das florestas tem uma pegada política muito importante. Tem um valor por si só e muitos povos indígenas se identificam com esse discurso, não foi imposto a eles. O meu problema é que isso tende a cristalizá-los em um papel e, em última instância, continua sendo um pensamento colonial. Depois, fica difícil você explicar, por exemplo, os povos indígenas que decidem fazer de alguma parte de seu território como pasto, ou plantação de larga escala. E eu me sinto desconfortável em dizer que os indígenas estão sendo enganados, ou aliciados. Tenho desconforto em dizer isso. A gente tem que pensar que, em algumas fronteiras como em Mato Grosso e Pará, algumas terras estão ao lado de grandes extensões de terra, com ofertas contínuas dos fazendeiros. Para sintetizar, entendo que esse discurso seja politicamente relevante, entendo que não seja imposto de fora, mas se a gente for ficar só nele, vai perder a capacidade de entender e explicar essas zonas híbridas.”
(Cientista político)

Responsabilidade do Estado e também nossa responsabilidade

“Acho que essa narrativa é importante porque é verdadeira e justa, no sentido de que corresponde a essa sabedoria ancestral de simbiose, de viver coletivamente com todas as formas de vida. Ao mesmo tempo, ela pode produzir uma responsabilização desproporcional. Sim, sem dúvida nenhuma, eles são guardiões da floresta, mas a responsabilidade de cuidar das florestas não deve ser só deles, né?”
(Curadora) 
“Essa é uma narrativa situacional que tem dado mais visibilidade para esses povos. Mas precisamos pensar além dessa narrativa, pois não só os povos indígenas, mas todos nós devemos ter um compromisso com o planeta. Não adianta delegar somente aos povos indígenas serem os guardiões da Amazônia, das florestas, dos biomas brasileiros.”
(ONG nacional)
“Todos nós devemos cuidar da floresta, essa deve ser uma responsabilidade conjunta.”
(Doadora internacional)
“Correta, muito atraente. O aspecto problemático dessa narrativa é que o Estado deveria ser guardião da floresta.”
(Correspondente internacional)
“Tem um peso simbólico, bonito, de ser guardião; a coisa do cuidado, da casa, floresta como casa. Por outro lado, a ideia de guardião está associada à ideia de herói. E, uma vez que você é guardião ali, é herói, é quase como uma coisa meio autônoma, como se você não precisasse de proteção do Estado.”
(Comunicóloga)
“Mas temos que ver o quanto de transferência de responsabilidade tem nisso. Além de toda a luta para ficarem vivos, ainda têm que ser os guardiões da floresta? É a mesma raiva que sinto quando ouço um político de 60 anos dizendo que os jovens são maravilhosos e vão salvar o mundo.”
(Comunicador)

Precisa ser atualizada…

“Os povos indígenas estão mudando, todo mundo está sempre mudando. Não acho que uma campanha em torno dos guardiões da floresta deva apresentá-los como congelados no tempo, relegados ao passado. Precisamos mostrar a relação ativa e permanente deles com a floresta, seus modos de vida, assim como os advogados, os políticos indígenas, os estudantes nas cidades, lutando de uma outra forma por seus direitos.”
(Jornalista)
“É importante mostrar que eles não são só guardiões da floresta, eles estão em toda parte, eles estão nas universidades, eles estão pedindo a palavra. Eu acho que realmente é importante não sacralizar.”
(Filósofa)
“Guardiões da floresta, mas, se a gente permitir, também são guardiões de um tempo futuro. Então, esse enunciado revisto é bem-vindo.”
(Curador) 

Não, porque é uma outra coisa…

“Essa narrativa é um mito. O que eles fazem é ter um uso adequado da floresta, com áreas de caça, de coleta, de pesca. Eles não usam todos os espaços ao mesmo tempo. Com isso, há possibilidade de planejamento para o uso adequado da floresta. Pensam mais nas suas necessidades de sobrevivência, nos que viverão amanhã.”
(Cientista)
"Não é que os indígenas preservam mais, é o nosso sistema que destrói tudo.”
(Assessor de Comunicação)
“Não é bem assim. Floresta, para nós, é casa. É um outro conceito. O que significa casa para nós? Casa é uma moradia de seres, pessoas. A terra é uma casa, o domínio aquático é uma casa, o espaço aéreo é uma casa, mas eles não se preocupam em entender isso, começam a criar os jargões, ter modelos e começam a inventar modelos.”
(Antropólogo indígena)
“Eles não são guardiões da floresta, mas guardiões da vida. Os impactos de algumas alterações na floresta trazem consequências gravíssimas, mas não para as populações indígenas, mas para todo mundo e para as gerações futuras.” 
(Ativista)
“Não, eles têm sociedades mais evoluídas que a nossa, mas eles são gente e muitos deles estão encurralados: caça escassa, terra sem qualidade, dependentes do dinheiro para uma série de coisas. Não adianta fechá-los na redoma e achar que está tudo bem. Depende da degradação dos territórios, da segurança alimentar, do crescimento demográfico, de uma série de coisas. E eles também querem participar da solução.” 
(Escritora) 
“Não é um mau ponto de partida, mas não é toda a história. E é um pouco enganosa, pois ignora informações importantes, como o fato de muitos terem hoje seus meios de subsistência destruídos etc. Tudo bem dar a alguém um rótulo de responsabilidade, mas se eles não têm poder, não há nada que eles possam fazer só com o rótulo.” 
(Comunicador internacional)

Não sei…

“Não sei se ele é bom ou se ele é ruim, mas me faz pensar numa coisa de indústria cinematográfica, em desenho mais americano. Acho que ele coloca os indígenas como guardas, como aqueles que não se integram, que se abrem pouco para o diálogo.”
(Doadora nacional)
“Acho que sim, quem sabe cuidar da floresta são eles, mas essas expressões clichê são perigosas, porque tendem a desumanizar. Quando você chama de guardião da floresta, você tira a obra humana, porque é deles essa obra humana de preservação, de criação. Guardião vira uma coisa assim, do guarda florestal, ou do velho de barba branca e cajado da floresta. Parece uma coisa de fábula. A impressão que dá é que desumaniza. Guardiões da floresta podiam ser alcões, sequóias.” 
(Editor)
“Ando um pouco incomodada com essa narrativa. Ao mesmo tempo que é útil para os ambientalistas e a gente usa muito o termo guardiões das florestas porque queremos salvar a biodiversidade e o clima, a gente não mergulhou para saber quem são essas pessoas, as características, o que elas querem, como elas se organizam.”
(ONG internacional)
“Não sei. Acho importante, mas perigosa. O perigo seria para as próprias pessoas que estão lá na ponta, elas serem alçadas a uma certa posição de guerreiras e de enfrentamento, que reverbera em medo, violência, morte e mais preconceito. Porque você tem um olhar de fora, mas elas estão ali, no mundo local. E o mundo local reage muito mal ao modo como a gente apresenta os povos indígenas ao mundo maior. Já vi liderança indígena sendo desacreditada dentro de seu povo porque assumiu uma posição importante para fora, defendendo os direitos de seu povo, mas que foi desacreditada por ter sido apresentada numa outra narrativa que não combina ou bate de frente com a narrativa dali.”
(Doadora nacional)

Não, porque…

“Acho isso de uma babaquice sem tamanho, um horror. Guardiões de floresta coisa nenhuma. Às vezes, eles acabam entrando nessa, se deixando usar por essa narrativa, porque evidentemente que é um jeito de assegurar os direitos deles sobre a terra, num contexto de racismo, num contexto de uma sociedade que os odeia, em meio ao retorno dessa coisa do assimilacionismo, integracionismo. A reação a isso é tirar o índio da condição de ser humano e colocá-lo nessa condição pré-cabralina, angelical.  Entendo que haja uma necessidade disso ser uma forma de criar um escudo contra tudo o que a sociedade não indígena investe pra despossuir essa turma, mas tem o outro lado também, que acaba reforçando muito os estereótipos.”
(Jornalista)
“Acho que tem dois, pelo menos dois problemas. Primeiro que esses territórios não necessariamente são florestados. Têm indígenas que vivem em territórios devastados, outros em territórios que estão sendo reconstruídos. Se você pensar, por exemplo, nos Maxacali, no norte de Minas, a terra deles é um pasto. Ou em outros povos indígenas no Nordeste, ou nos Guarani-Kaiowá em Mato Grosso do Sul. Então, a gente tem situações em que não tem nem ambiente florestado pra você guardar, e esse eu acho que é um primeiro problema. Um segundo é porque tem grupos que estão fazendo opções de, digamos assim, de bem-estar econômico e social. Eles têm o direito de fazer isso também.” 
(Antropólogo)
“Acho uma grande sacanagem a gente atribuir a responsabilidade ao outro do que foi causado pela gente. Ou seja, a gente agora inventou essa ideia de guardião, que é uma ideia, vamos dizer assim, capitalista. Você gera o guardião que vai receber fundos para poder cuidar dos recursos naturais. Isso é muito diferente das relações que os indígenas têm com a natureza. A ideia do guardião é muito balizada nessa coisa conservacionista.”
(Antropólogo)
“Eu detesto. Não têm indígenas só em floresta, têm indígenas em outros biomas, em outros territórios. Prefiro território, pois são lugares com sujeitos. O movimento ambientalista brasileiro, com exceções digníssimas, entendeu muito mal a questão ambiental. Ele importou noções dos Estados Unidos, da Austrália, da Nova Zelândia, das unidades sem sujeito, e não entendeu que ela aqui foi construída de outra maneira. Dito isso, fortalece a luta? Fortalece. O que importa são eles, se você me perguntar uma concepção filosófica disso, eu vou dizer: eu não gosto do instrumentalismo, não gosto que as agendas se confundam. Agora, a estratégia deles eu sempre respeito.”
(Judiciário)
“Tem muito problema nessa narrativa. Ela é conservadora, racista, colonialista, essencialista, nos tira a obrigação. Reduz os direitos indígenas ao papel na conservação. Ela diz: 'deixa os indígenas protegerem a terra e vamos fazer o agronegócio no resto’.” 
(Comunicador)
“Acho nociva sob todos os pontos de vista. É uma maneira de idealizar. É a história do bom selvagem. Ainda que tenha uma utilidade, a gente acaba fazendo por outras vias aquilo que os próprios movimentos indígenas condenam, que é estereotipar. Quando você faz isso, reduz o indígena àquela imagem que você quer dele. É verdade que os modos de vida desses povos contribuem não apenas para a manutenção da floresta em pé, mas para a própria criação da floresta, mas a narrativa dos guardiões da floresta subtrai a humanidade dessas pessoas. Assim como acho absurda essa ideia de transformá-los em vigilantes da natureza. Às vezes, no jogo político, essas imagens são apropriadas para se avançar uma pauta. Mas não é uma imagem que, no final das contas, seja positiva, pedagógica, pois não ajuda a entender a complexidade da situação e a diversidade entre os povos.”
(Sociólogo)

A luta é por território!

A principal narrativa dos povos indígenas é a dos direitos, especialmente do direito à terra. Essa narrativa tem como alicerce o capítulo “Dos Índios” da Constituição de 1988, que completou 30 anos em 2018.

“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
(Constituição Cidadã, artigo 231) 

Além dos indígenas, as narrativas dos direitos constitucionais foram citadas por diferentes segmentos dos públicos engajados, em particular por juristas. Nesta última década, os direitos territoriais dos povos indígenas passaram a ser cada vez mais defendidos por cientistas e organizações internacionais, e incorporados entre as recomendações de relatórios, como o que o IPCC lançou em 2019.

Essa foi descrita como uma narrativa com mais visibilidade também no Brasil nos últimos anos devido “à maior organização e conscientização dos povos indígenas sobre seus direitos” e “às ameaças que se impuseram”, anteriormente invisíveis para diferentes públicos e hoje muito mais evidentes.

“Acho que a principal narrativa dos indígenas, que ultrapassa os últimos dez anos, é que essas populações antecedem a formação do Estado brasileiro e, por isso, têm direito a ocupar esses territórios. Óbvio que isso envolve mostrar a diversidade, as relações distintas dos povos indígenas com a natureza, como fatores de diferenciação, elementos que vão sendo introduzidos nessas narrativas.”
(Jurista)
Crédito: Agência Senado
“A demarcação e a proteção dos territórios são as narrativas fundamentais. Ter o território é ter onde viver, mas é também ter as condições de sobrevivência da própria língua, das culturas, dos rituais, é toda uma estrutura saudável de existência. É um sistema de vida que envolve o convívio com muitas vidas, muitas humanidades, muitas ancestralidades.” 
(Artista indígena)
“A principal narrativa é por direitos. É interessante como os índios se apropriaram dos instrumentos jurídicos. Primeiro, da Constituição. Depois, da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). E é muito interessante, porque uma das primeiras iniciativas do governo Bolsonaro foi tentar revogar a Convenção 169 da OIT. Ele descobriu que não podia, que a janela pra isso já tinha se fechado.”
(Jurista)
“A gente está em luta. Mesmo com os nossos direitos garantidos pela Constituição, a gente sempre tem que seguir lutando por terra, por saúde diferenciada, por educação que atenda às nossas especificidades, pelo direito à universidade. Atualmente, essas lutas têm se intensificado. Nossos direitos são cada dia mais negados, nossas lideranças estão cada dia mais intimidadas, nossos territórios estão sendo invadidos por garimpeiros, por grileiros. Há uma enorme pressão por parte do governo em determinar quem é e quem não é indígena.”
(Comunicadora indígena)
“Acho que, no Brasil, a questão principal é a do direito à terra. A gente tem um modelo produtivo com foco no agronegócio, na pecuária, na mineração, na exportação de commodities, um modelo que avança impiedosamente sobre os territórios indígenas e que atua com muita força no campo político para que os direitos indígenas não sejam reconhecidos.”
(Filósofa)
“Há ainda uma incompreensão da elite brasileira de que assegurar terras para os povos indígenas e comunidades tradicionais é uma condição indispensável para a segurança jurídica no Brasil, para que se possa falar em desenvolvimento. Uma coisa não anula a outra, ela se complementa. Se você tem um campo pacificado com as suas terras preservadas, você tem um país onde o investidor tem mais condições de aplicar o dinheiro, por exemplo. Todo mundo fala em terras indígenas, mas ninguém fala nas terras degradadas, já abertas e que não estão sendo usadas para produção agrícola."
(Jornalista)
“Eles lutam pela demarcação das terras indígenas, pela diversidade cultural, pela preservação da vida. Não são narrativas novas, mas a maneira como isso vai sendo traduzido para públicos diferentes ao longo do tempo é a novidade.”
(Ativista)
Crédito: Reprodução Instagram

Cientistas brasileiros também passaram a citar os territórios como essenciais para as soluções climáticas. O relatório do Painel Científico para a Amazônia (SPA, sigla em inglês) lançado em dezembro de 2021, inclui entre as ações estratégicas que “fornecer direitos de posse de terra e um ambiente institucional que possibilite o cumprimento desses direitos é uma forma importante e econômica para os países protegerem florestas e diversidade cultural, e atingirem seus objetivos climáticos”. 

No relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado em 2014, foi recomendado não só a regularização e desintrusão das terras indígenas, mas também a recuperação ambiental das terras indígenas exploradas e degradadas durante a implementação de projetos de colonização e grandes empreendimentos realizados entre 1946 e 1988 como a mais fundamental forma de reparação coletiva pelas graves violações sofridas pelos povos indígenas no Brasil. 

Crédito: Ministério Público Federal

Por outro lado, o direito à terra foi o tema mais polêmico das entrevistas com os públicos não engajados, em torno do qual foram apresentados os argumentos mais críticos aos povos indígenas. A possibilidade de uso econômico de suas terras, por eles próprios ou por terceiros, foi identificado como o ponto mais sensível da discussão sobre esse tema – mais em Públicos não engajados.

Adiar o fim, sustentar o céu, ser floresta

Os modos de vida, as subjetividades e as cosmologias indígenas foram apresentadas por alguns dos entrevistados como uma “evolução”, um “aprofundamento”, um “desdobramento”, uma "sofisticação" da narrativa que apresenta os povos indígenas como “guardiões das florestas”. E são, obviamente, intrínsecos à existência dos indígenas. 

Além de centrais ao trabalho de inúmeros pensadores, escritores, artistas e lideranças indígenas, os modos de existência dos povos indígenas passaram a ser incluídos em agendas e propostas políticas; adotados como temas de novas linhas de pesquisas, grupos de estudo e cursos; e também se tornaram fonte de inspiração e foco de projetos artísticos – atraindo a atenção de cientistas a filósofos, de artistas a ativistas, no Brasil e no exterior. 

Ainda que hoje no país estejam restritas e compreendidas apenas por uma parte da elite cultural, as narrativas sobre as cosmologias indígenas foram apresentadas como entre as mais potentes como “contraponto à crise climática e do capitalismo”, para "atiçar e provocar nosso imaginário”, "apresentar a exuberância da diversidade indígena”. 

"Há um esgotamento das narrativas ocidentais. As narrativas indígenas, nesse sentido, são como um sopro de vida, outra forma de se perceber no mundo, de se relacionar com a natureza. Isso ganhou enorme projeção nos últimos anos.”
(Artista indígena)
“O projeto eurocêntrico de capitalismo naufragando com as mudanças climáticas pode ser a chance dos povos da África e da América colocarem sua visão de mundo na disputa. Os povos indígenas têm mais do que nunca legitimidade pra isso. Agora, se o capitalismo ganhar etnograficamente, se tiver monopólio das nossas existências, da relação com o planeta, aí acabou. Só o que vai nos restar será administrar o ecocídio.”
(Comunicador) 
“A cosmologia dos povos indígenas, expressa em obras como ‘A Queda do Céu’, é uma narrativa muito avançada sobre como lidar com a crise climática.”
(Comunicador)
“O modo de vida do indígena na floresta é algo cada vez mais difícil de se encontrar no planeta. Então, quando se fala de guardião da floresta hoje, se fala sobre um modo de vida diferente do padrão tradicional de sociedade ocidental. Quem vive da e na floresta mantém práticas de vida mais sustentáveis e mais inteligentes. O que se vê é que, em lugares habitados por povos tradicionais, a floresta costuma estar mais bem conservada. E esses serviços que eles prestam, que geram benefícios para o mundo inteiro, são pagos hoje com bala, mercúrio e doença de branco, quando tudo o que eles querem é saúde, educação, acesso à internet, infraestrutura.”
(ONG nacional)
Crédito: Selvagem Ciclo de Estudos
Crédito: Selvagem Ciclo de Estudos
Crédito: Selvagem Ciclo de Estudos
Crédito: Selvagem Ciclo de Estudos
Crédito: Selvagem Ciclo de Estudos
Crédito: Selvagem Ciclo de Estudos
“O fato das pessoas terem tomado para si as narrativas mudou o mundo que eu habito. Se o corpo é território, como eu posso imaginar algo que só aquele corpo pode imaginar? O poder do sonho, como lugar de mundo, xamânico, de atuação, de criação e de aprendizado mudou minha prática onírica e minha prática criativa.”
(Artista)
“Estou estudando Yanomami. Quando você começa a entrar numa língua, você começa a entender outras formas de ver o mundo, há ali um campo poético importante de imaginação e de política. Os Yanomami, por exemplo, têm uma palavra para ‘atravessar a noite’, que não é nem amanhecer, nem anoitecer.”
(Cineasta) 

Entre os entrevistados ligados ao campo da arte, cultura e humanidades, há enorme interesse em trocar e aprender com as formas de pensar e estar no mundo dos povos indígenas e compreender melhor as relações estabelecidas com outros seres vivos.   

“Na verdade, a gente nem tá falando só dos direitos indígenas, tá falando dos direitos também dos não humanos, dos direitos das florestas, dos direitos dos animais. E a gente não tá falando só em direito, estamos falando em vida. Os caras estão falando: ‘me deem direitos’, que é a linguagem que a gente entende, mas é sobre a vida e sobre o que significa estar vivo, como estar vivo. Essa é uma potência que eles têm, de ir muito longe.”
(Antropólogo)
“Acho que tem toda essa questão de um mundo que não é somente humano, algo que mal traduzindo poderia ser chamado de uma filosofia de vida. A questão da espiritualidade, que não é uma palavra, que uma palavra nunca alcança o que é. Esse invisível, de cuidarem das questões mais sensíveis, mais sutis, para manter o céu em pé. Eu acho que essa ideia do céu que o Kopenawa trouxe, ela foi muito compreendida, sabe? Acho que ele mudou uma chave, muita gente conseguiu absorver isso que eu estou tentando explicar a você."
(Curadora)
“A narrativa das cosmovisões como tecnologias é algo muito potente. As cosmovisões têm essa sabedoria prática, como cuidar da roça, como produzir fartura a partir da biodiversidade, por exemplo. E elas também têm essa sabedoria poética, que tá nessa ordem da produção contínua de relações com os seres vivos. Eu realmente acho que temos que olhar para essas práticas como tecnologias avançadíssimas, esse wi-fi cosmopolítico, que são as medicinas, que são os pajés, que são os cantos, que são as artes.” 
(Curador)
“É importante dizer que, onde tem povo originário, tem floresta. Eles não estão cuidando da floresta, eles são a floresta. Eles não estão cuidando do rio, eles são o rio. Não precisa de uma lei para que possam cuidar. Como imaginar isso, se moramos num lugar sem árvores? Os povos indígenas nem chamam de árvore. Eles têm nomes específicos para as diferentes espécies. Nós é que chamamos de árvore. Eles sabem qual é a árvore. O rio é o avô porque eles estão vivendo experiências que nós não alcançamos. Por isso, precisamos passar por uma crítica e reconfiguração do nosso imaginário. Temos que ouvir os indígenas, e isso significa ouvir também todo o resto, porque eles estão conectados com tudo.” 
(Artista)

Crédito: Autonomia Literária

Um dos entrevistados destacou que ainda “são pouquíssimas as traduções e os estudos sobre narrativas ameríndias, análogos a aqueles que a gente encontra, por exemplo, sobre as culturas clássicas da Grécia arcaica e tantas outras”.

"Há todo um trabalho a ser feito de tradução de narrativas, de cantos, rituais, de estudos etnográficos, que sejam feitas a partir de uma preocupação literária, não só de uma preocupação etnográfica, ou seja, de uma junção, na verdade, da perspectiva etnográfica com a perspectiva literária.”
(Antropólogo)

Fazedores de florestas há milênios, retorno e convívios com ancestralidades

Os estudos que têm demonstrado que as florestas vêm sendo manejadas há milênios por povos indígenas e que, justamente por isso, foram se tornando mais ricas foram considerados ainda pouco conhecidos e muito importantes para enriquecer narrativas que vêm recontando a história do que hoje chamamos Brasil. 

“Uma coisa que está acontecendo é uma revolução na arqueologia brasileira, já tem alguns anos. Existe uma mudança de parâmetro, de paradigma, dentro da arqueologia, que é considerar os povos como guardiões da sua própria história, como as melhores fontes de informação, como os melhores pesquisadores da arqueologia e a arqueologia como uma coisa viva. E no que diz respeito à arqueologia amazônica, revertendo conceitos, ultrapassados, que a Amazônia era pouco povoada antes da invasão europeia. Não era. Então, a arqueologia tem feito e divulgado altas descobertas, tem alcançado um desenvolvimento pelas suas pesquisas que são chave para derrubar muitos preconceitos.”
(Jornalista)
“As contribuições da arqueologia amazônica contemporânea, da ecologia histórica contemporânea e da antropologia contemporânea não estão incorporadas numa visão de senso comum da Amazônia, só de grupos esclarecidos, que têm acesso a esse tipo de informação. Essa visão da Amazônia, com grandes cidadelas fortificadas, um proto-urbanismo pré-colonial, com estradas, diques de contenção, paliçadas, jardins cultivados e tal (...), nada disso passa pela cabeça do cidadão comum no Brasil.”
(Antropólogo) 
“Os estudos arqueológicos que mostram a presença humana antiga na manutenção da Amazônia e a complexidade dessas sociedades derrubam essa ideia do primitivismo.”
(ONG nacional)
“Do ponto de vista dos especialistas, tem toda uma discussão sobre florestas culturais, paisagens antropogênicas, mudanças na composição das florestas por meio da ação humana, que não implicou na destruição, mas implicou na mudança da própria formação da floresta. Os indígenas, nesse contexto, não são parte do problema, mas são parte da solução.”
(Antropólogo)

Crédito: GLF Amazônia 

O orgulho identitário, a valorização e a conexão com ancestralidades e os discursos anticoloniais foram apontados como narrativas emergentes, que devem ganhar ainda mais visibilidade e serem fortalecidos nos próximos anos – ou a ”memória como ferramenta de luta”, como nos disseram alguns dos indígenas entrevistados. Essas são narrativas que questionam e atualizam os debates sobre a identidade brasileira e que tem gerado crescente interesse da indústria cultural e de entretenimento e também do mercado publicitário. 

“Uma nova narrativa que os jovens indígenas vêm usando nas redes é da ancestralidade, das origens históricas ancestrais do Brasil.”  
(ONG nacional)
“Esse resgate de memória é muito importante, não só para que as pessoas entendam o sentido da luta nos territórios, mas que eles próprios, ou nós, possamos fazer as lutas pela terra em outros padrões e também nas cidades.”
(Ativista)
“Esse retorno à ancestralidade traz elementos inspiradores, sobre o nosso legado e sobre o que dele se faz presente. As questões envolvendo ancestralidade têm sido muito resgatadas nessa perspectiva, a humanidade que nós tínhamos e temos a partir da nossa ascendência. A ancestralidade como resistência, como uma ação artística, cultural e política e como processos de resgates históricos muito fortes.”
(Sociólogo) 
Crédito: Gustavo Caboco
“Precisamos construir símbolos que possam ser reconhecidos e que possam ser admirados pelos jovens. Hoje, tenho muita consciência do quanto tentei negar alguns aspectos da cultura do meu povo. Os meus ídolos de adolescência não me pertenciam. Acabei criando uma imagem do que é bonito, do que é heroico, do que é intelectual, a partir do que vinha de fora. Poderia ter aproveitado muito mais se eu entendesse que o pajé, que a professora da escola, eram esses ídolos que eu precisava para crescer. As redes que teço hoje, os caminhos que piso, são caminhos para que os jovens indígenas se reconheçam.”
(Artista indígena)
“A gente sabe que a história brasileira é uma grande mentira, porque foi contada pelos colonizadores. Não contaram a nossa história. Não contaram a história da escravidão. Pessoal achava que a gente era preguiçoso porque não queria ser escravo. Quem quer ser escravo? A gente preferia morrer do que ser escravo. Só que essas histórias eram contadas do jeito deles. Então, hoje tem isso, de que o índio é preguiçoso, que o negro é subserviente, tem todo esse preconceito. E hoje tem também a gente, recontando a história do país.”
(Comunicador indígena)
“Essa coisa dos indígenas nas redes sociais, da participação dos indígenas em lives, dos minicursos de línguas, enfim, os indígenas cada vez mais como porta-vozes dos seus conhecimentos e modos de viver, torna cada vez mais difícil reiterar uma suposta pureza em contraposição à ideia de aculturação. Acho que essa ideia de que os indígenas são seres intrinsecamente ecologistas e que vivem em oposição a tudo que diz respeito às tecnologias, às mercadorias etc., vai ficando cada vez mais antiga frente a essas novas narrativas. Essa comunicação tem ajudado a trazer a complexidade desses contextos.” 
(Antropóloga)
“As florestas têm sido uma produção dos próprios índios. Onde houver índio, vai ter floresta, mas não quer dizer que não haja índio na cidade. O índio sabe reflorestar – não só a terra, mas também as relações, o pensamento, uma não floresta. Os pobres periféricos podem se ligar na questão dos apagamentos das suas histórias. Nós vivemos em cima de mundos desaparecidos. Para quem é periférico, o desaparecimento acontece o tempo todo. O desaparecimento do próprio corpo, da família, da sua existência. No capitalismo, sempre tem alguém que pode desaparecer. O capitalismo, para funcionar, precisa de excluídos.”
(Artista)

Em evento pré-COP26 organizado pela Amazônia Real, o antropólogo indígena João Paulo  Tukano afirmou que não basta chamar os jovens para “gritar pelas mudanças climáticas”, que é preciso também ouvir e consultar os mais velhos e os mais sábios para discutir o assunto.

“Eu gostaria muito que esses grandes debatedores de mudanças climáticas pudessem dispor o seu tempo para ouvir os nossos especialistas indígenas, os pajés”, afirmou ele. 

Legenda: Borduna Wapichana no sambaqui de Itaipu, Rio de Janeiro
Crédito: Moara Tupinambá

Fazer prosperar a economia da floresta em pé

No Brasil, as narrativas sobre o “uso sustentável dos territórios indígenas”, a “economia da floresta” e a “bioeconomia” foram qualificadas como extremamente importantes por entrevistados de públicos engajados e interessados e também foram valorizadas por formadores de opinião de públicos não engajados, especialmente os empresários. 

Essas foram narrativas descritas como as mais urgentes em contraponto às que vêm sendo adotadas por Jair Bolsonaro e ao modelo de desenvolvimento predatório atualmente em curso na Amazônia. Essas são também as narrativas apontadas como as que têm mais chance de disputar o imaginário e obter o apoio e a adesão da população geral. 

“A economia da floresta em pé é a narrativa mais importante no momento, porque aquela narrativa sobre o chamado desenvolvimento a qualquer custo volta com força neste governo. As organizações tiveram que correr para colocar algo em contraponto. Ainda é um esforço pouco articulado e sem a escala que merece, mas vem crescendo muito. Precisamos ampliar a visibilidade dessa narrativa que valoriza a conservação da biodiversidade, a economia descarbonizada, o saber tradicional. Isso precisa ser visto como inovação e como fonte de novos negócios para empresas e para o país."
(ONG nacional)
“Nas manifestações empresariais recentes, tanto na carta dos três bancos quanto na que dá origem à Concertação da Amazônia, a questão dos povos das florestas está sempre presente. A ideia de que você tem que respeitar a floresta inclui a ideia de que você tem que respeitar os povos da floresta (...) Uma das esperanças que a Amazônia desperta não está só nos serviços ecossistêmicos prestados pela floresta, mas também nos conhecimentos das populações tradicionais, para o desenvolvimento de uma bioeconomia. Você não vai ter uma bioeconomia de fármacos, cosméticos, uma diversificação do sistema alimentar, sem uma contribuição importante dos povos tradicionais. Essa é uma dimensão fundamental, ainda a ser mais explorada junto ao público no Brasil.”
(Cientista político) 
Capacitação sobre coleta, tratamento, conservação, armazenamento e transporte de sementes na Terra Indígena Menkragnotí (PA)
Crédito: Instituto Kabu
Capacitação sobre coleta, tratamento, conservação, armazenamento e transporte de sementes na Terra Indígena Menkragnotí (PA)
Crédito: Instituto Kabu
Capacitação sobre coleta, tratamento, conservação, armazenamento e transporte de sementes na Terra Indígena Menkragnotí (PA)
Crédito: Instituto Kabu
Capacitação sobre coleta, tratamento, conservação, armazenamento e transporte de sementes na Terra Indígena Menkragnotí (PA)
Crédito: Instituto Kabu
Capacitação sobre coleta, tratamento, conservação, armazenamento e transporte de sementes na Terra Indígena Menkragnotí (PA)
Crédito: Instituto Kabu
Capacitação sobre coleta, tratamento, conservação, armazenamento e transporte de sementes na Terra Indígena Menkragnotí (PA)
Crédito: Instituto Kabu
“Precisamos ter alternativas de desenvolvimento que não sejam mineração em terra indígena, incompatíveis com saúde e preservação. Como que a gente mantém, no melhor dos mundos, o modo de vida tradicional, mas também a dignidade dessas pessoas?” 
(Cientista política)
“Por um lado, tem a floresta em pé que hoje, por uma série de motivos, gera menos receita a curto prazo do que plantar alguma coisa. Então, tem um argumento de que há uma demanda da renúncia do potencial de riqueza e não é fácil convencer todo mundo de que isso é válido. Do ponto de vista da economia global, aqueles que no passado cresceram e se desenvolveram explorando essas riquezas agora querem impor limites, porque se todo mundo fizer igual, o planeta implode. No Brasil, esse debate sobre os caminhos para a transição econômica ainda precisa ser feito."
(Doador nacional)

Crédito: OCAA

“Acho que a luta nos últimos 10 anos tem sido fazer com que o público e os governos em particular reconheçam o papel dos povos indígenas e os recompensem por meio de programas que pagam às pessoas por seu papel pela proteção de ecossistemas, pela prestação de  serviços ambientais. Acho que o maior desafio para os povos indígenas é obter esse reconhecimento, porque na maior parte do tempo seu trabalho para proteger a terra e o meio ambiente é retratado como anti-desenvolvimento.”
(ONG internacional)
“A primeira e principal narrativa é a do direito territorial. A segunda, garantir que o Estado ofereça serviços sociais — saúde, educação, eletrificação. E a terceira seria transformar as duas primeiras em oportunidades de emancipação, que as comunidades pudessem trazer capacidades ao território, gerar renda. Acho que as duas primeiras predominaram e a terceira ficou um tanto quanto à margem. Hoje, pagamos o preço dela ter se mantido como minoritária.” 
(Empreendedor socioambiental)
“A gestão territorial e as atividades econômicas nos territórios indígenas serão chave nesses próximos anos por conta dos discursos do Bolsonaro e dos setores mais conservadores. Acho que falta comunicar que os índios são aliados da população brasileira e porque são aliados.” 
(ONG internacional)

Uma minoria entre os entrevistados dos públicos engajados apontou preocupação com o conceito de bioeconomia que vem sendo adotado, com a abrangência e a consistência da agenda ESG (ambiental, social e governança, em português) e com o retorno de mercados  de carbono. Um conjunto ainda menor de pessoas fez críticas a “mecanismos de financeirização da natureza” e a “falsas soluções verdes”. 

Além disso, uma pequena parte dos entrevistados destacou haver pouca compreensão por parte dos economistas no Brasil sobre temas e propostas ligados aos povos indígenas, economia da floresta e novos modelos econômicos, por exemplo. 

“Hoje, o que acontece no Brasil é que um estudante passa por um curso de economia sem ouvir falar de povos tradicionais nenhuma vez.” 
(Sociólogo)
“Acho que, primeiro, precisamos criar o campo dos economistas abertos à discussão.”
(ONG nacional)
“No Brasil, ainda vai ser preciso muito esforço e muito trabalho para romper a dicotomia entre economia e meio ambiente, especialmente sobre como esses temas são levados e chegam à população. Precisamos falar sobre a economia indígena, ter pessoas como a do André Baniwa como parte do debate público, sair dessa visão que apresenta os índios como coitados, vítimas, assistidos, pobres.”
(ONG nacional) 
Encontro entre Sueli Maxakali, Joelson Maxakali e Isael Maxakali em Teófilo Otoni (MG), na futura Aldeia-Escola-Floresta
Crédito: Teia dos Povos

“Não está dando mais, vocês avançaram demais”

A narrativa dos defensores ambientais, povos indígenas e comunidades tradicionais lutando não apenas por sua sobrevivência, mas na linha de frente pela proteção do planeta, com suas vidas e seus territórios sob ataque, foi apresentada como muito potente, especialmente no exterior. Essa foi considerada a narrativa que “humaniza”, “incorpora histórias de vida”, “adiciona novas camadas às imagens de destruição das florestas''. 

“Hoje, o que eles podem dizer é: ‘guardamos a floresta até agora, mas não está dando mais, vocês avançaram demais’.”
(Comunicador)
“Os povos indígenas como defensores da floresta em nome de todos nós e sendo assassinados por isso, o que não é apenas uma narrativa, mas um triste fato, é uma coisa que apela fortemente para a nossa culpa moral, que é emocionalmente ressonante e que sempre chama a atenção da mídia e do público.”
(Cientista internacional)
“O que tem me chamado a atenção nos últimos anos são as narrativas de lideranças que nos convocam à ação, que nos cobram respostas. Acho que são narrativas menos passivas e mais realistas que a dos guardiões das florestas, do tipo ‘vocês de fora deveriam nos ajudar, nós aqui carregando um fardo que não deveria ser só nosso’.”
(ONG internacional)
“Nós estamos na linha de frente da luta pela sobrevivência do planeta. Estamos falando sozinhos. Se tivéssemos sido ouvidos, não estaríamos nesta situação.’ Acho que essa fala dá uma materialidade para a luta pelo clima.”
(ONG nacional)

Legenda: 'Raising the Roof: Voices for the Amazon', evento com lideranças e artistas indígenas na COP26
Crédito: Global Canopy 

A vulnerabilidade, mais social e econômica, foi justamente uma das principais associações feitas aos povos indígenas pelos públicos não engajados. 

Além do aumento do desmatamento em terras indígenas nos últimos anos, as mudanças climáticas impactando povos indígenas foram destacadas por entrevistados indígenas e cientistas como a serem cada vez mais integradas a essa narrativa.

“Nós sabemos a importância, sabemos respeitar esses lugares, a gente tá tentando proteger de várias formas, mas as mudanças climáticas estão cada vez mais chegando no nosso território.”
(Antropóloga indígena)
“Quando se fala de mudança climática, a prática do homem não indígena também atinge os nossos territórios. Em 2001, meu pai e o meu tio fizeram um calendário sobre a nossa forma e tempo de fazer roça, o tempo de piracema, o tipo de caça que vem, a temporada de várias coisas que a gente consome. Hoje, não tem mais como produzir a roça seguindo esse calendário. Outra questão é que não é só a terra para ter roça, para alimentar os filhos, mas, também, fazer com que os seres não humanos que moram ali continuem vivendo. A partir do momento que você atingir o lugar sagrado dos seres não vistos como humanos, o impacto vai ser muito grande.”
(Antropóloga indígena)
“As narrativas trazem muito como as populações vêm sendo afetadas, como já não é mais possível assegurar um meio ambiente sadio, não por causa deles, mas por conta dos estragos dos brancos.” 
(Movimento social) 

Para alguns dos entrevistados, essa é uma narrativa com enorme apelo internacional e que também se conecta com o debate sobre colonialismo e desigualdade, em particular, a diferença histórica das emissões de gases de efeito estufa entre o Sul e o Norte Global e a agenda de loss and damage (asperdas e danos decorrentes das mudanças climáticas) .

Legenda: Reprodução Twitter
Legenda: Reprodução Twitter
Legenda: Reprodução Twitter
Legenda: Reprodução Twitter

Por esses motivos e também por conta do crescente número de compromissos com desmatamento zero, das regulações do comércio internacional de commodities em curso na União Europeia e no Reino Unido, as narrativas sobre as violações de direitos, os impactos socioambientais e o aumento da vulnerabilidade dos territórios indígenas foram apontadas como importantes de serem fortalecidas nos próximos anos.  

A exposição de marcas globais foi apresentada como a principal ameaça à narrativa “o agro é pop”. No Brasil, foi sugerido ampliar, aprofundar e diversificar as formas de divulgação da quantidade de terra degradada e sem uso no país versus a expansão da fronteira agrícola, ampliar os dados e a compreensão sobre os subsídios ao agronegócio, sobre a concentração de terras no país e sobre os impactos do uso excessivo de agrotóxicos na produção agrícola e impactos à saúde.  

“Acho que tem muito mais gente sensibilizada, de verdade, pela narrativa dos guardiões da floresta e outras pessoas começam a se aproximar dessa agenda por obrigação. Há um movimento gigantesco voltado a direcionar investimentos em uma transição econômica sustentável. Aquele compromisso anunciado pelos bancos brasileiros tem a ver com isso, por exemplo. Tem um momento muito oportuno para novas narrativas e para pressão política. Isso está vindo de fora, e qual é a massa crítica dentro do país? Quais seriam as demandas dos povos indígenas nesses processos?”
(ONG internacional)
“A narrativa mudou, obrigando governos e empresas a reagir. Isso pode ser exemplificado nos diferentes processos que existem na União Europeia para tentar regular suas empresas, para garantir que realizem as devidas diligências para remover abusos de direitos humanos ligados a povos indígenas e desmatamento de suas cadeias de suprimentos e nas discussões sobre o acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul.”
(Doador internacional)
Crédito: International Development Committee 

De forma mais esparsa, diversas outras narrativas foram citadas como relevantes, como indígenas em posições não esperadas e indígenas como cura e soluções para o futuro. 

“A principal mudança na última década foi o aparecimento dos indígenas representando outros papéis sociais: o autor, o doutor, o profissional de comunicação, o político, a mudança de atitude de se apresentar como um igual. Isso tem um enorme apelo para a sociedade brasileira.”
(Cineasta indígena) 
“Nós somos pessoas movidas pela mobilidade, nós não queremos ser aquilo que a gente sempre foi. O sujeito que nasceu no interior e é CEO de uma empresa em São Paulo, se tornou um grande empresário e usa o seu passado para engrandecê-lo: ‘olha como eu subi na vida’. Como você vai convencer um cara que acha que não tem relação forte com o seu lugar de origem que o índio não vai ficar melhor se vier para a sociedade não indígena? O problema não está em demonstrar a importância do índio. O problema está em compreender quem tem essa visão e o que você pode fazer para desfazer essa visão. E eu acho que são os indígenas nas universidades, os indígenas na COP26, nessas posições de poder, podem mudar isso.”
(Cientista político)
Legenda: A ativista e comunicadora Alice Pataxó no Roda Viva com Txai Suruí e Almir Suruí no Roda Viva
Crédito: TV Cultura

Narrativa para nós mesmos, poucas pontes com outras pautas

A formação e o fortalecimento de alianças entre povos indígenas e povos tradicionais, com o Movimento dos Sem Terra (MST), com o movimento negro, com o movimento feminista, por exemplo, foi elogiada e sugerida por uma parcela dos entrevistados engajados.

Entrevistados dos públicos interessados, mas não engajados, criticaram a falta de contato, diálogo e disputa com campos opositores, públicos não engajados, o brasileiro comum. Outras pessoas fizeram considerações sobre o debate, especialmente nas redes, estar “muito ligado e circunscrito a pautas identitárias” e não a “pautas mais universais, que mobilizam a sociedade brasileira como um todo”.

“A gente transpõe poucas pontes, a gente não frequenta o lado de lá (dos opositores) para entender como esses universos funcionam. Você precisa conhecer esse outro universo para poder encontrar pontos para trazê-los pro seu campo de percepção. Do contrário, você vai ter dois mundos que nunca vão dialogar. Precisamos de embaixadores.”
(ONG nacional)
“Temos que ter o discurso da resistência e da militância, porque todo mundo está sendo trucidado, mas precisa haver lugar de ponte com os outros setores. Quando a gente vai conversar com organizações, sinto desconfiança, resistência. Esse é um tema super duro, distante, para muitos brasileiros. Eu acho que, se pensassem em como aproximá-los das pessoas, se virasse algo que todo mundo pudesse pensar e falar sobre, seria uma mudança incrível.”
(Cientista política)
“Tem um movimento ‘tribalista’ no Brasil que me deixa preocupado. Como é que você faz para integrar a luta identitária a outras agendas? A forma como essa luta se coloca hoje pode enfraquecer sobremaneira a possibilidade de constituir e aglutinar novas forças políticas. É uma questão que me preocupa, do ponto de vista político, como fazer uma aproximação dessa (pauta indígena) com outras pautas e camadas da sociedade. Os movimentos identitários têm dificuldade de atravessar essa ponte.”
(Cientista político)
“A causa indígena acaba sendo associada a uma questão de um nicho. Ela tem que se associar a causas de massas. A mesma coisa acontece com o movimento negro, com o movimento feminista. Não que eu seja uma pessoa contrária às pautas identitárias, de jeito nenhum, sou pró essas pautas, mas acho que tudo isso tem que se converter em uma política que dialogue com as necessidades das classes médias baixas, que vivem na floresta ou que vivem em locais próximos da floresta e que se sentem atingidas pelos guardiões da floresta, que impedem, na visão delas, o desenvolvimento econômico da região. Acho que os movimentos por essas causas ambientais, a esquerda, de modo geral, não presta atenção nessas pessoas. Essa é uma das razões pelas quais o Bolsonaro segue tendo tanto apoio.”
(Filósofa)
“Não adianta dizer que os caras sofreram mais de 500 anos, toda humilhação, toda violência, todo assédio da sociedade branca. Não é que eles não tenham que ser radicais, mas esse não é um argumento para uma parcela da população que também é violentada todos os dias, que desconhece e não valoriza a nossa história. Isso é um argumento para mim, entendeu? Acho que a gente faz muito a narrativa para nós mesmos.”
(Cientista político)
“A narrativa que chega à periferia é muito limitada, e chega para pouca gente. Vira discussão na mídia no dia 19 de abril, mas é só um tótem, o assunto não continua nos outros 364 dias.”
(Ativista) 

Um número considerável de entrevistados dos públicos engajados manifestou preocupação com as contranarrativas do governo Bolsonaro e aliados. 

“Sinto que a maior parte do debate público no Brasil sobre povos e comunidades tradicionais ainda é dominado por narrativas negativas.”
(Ativista)
“O Brasil não conhece a importância que tem a cultura dos povos indígenas, do ponto de vista da linguagem, ou do ponto de vista da etnobotânica. Isso é pouco conhecido, pouco divulgado e, portanto, pouco valorizado. Com a brutalidade e a violência das posições da extrema direita veio não só a ideia de que índio tem terra demais, como uma depreciação das populações indígenas, explicitamente formulada pelo presidente da República. Esse é um problema muito sério, ao qual temos que responder urgentemente.”
(Sociólogo)
“Há hoje uma narrativa preconceituosa em relação aos povos tradicionais, puxando pela questão da terra, da bandidagem. Um certo despudor bastante violento e agressivo em relação a essas pessoas.” 
(Jornalista)
“Nos últimos dez anos, vejo como um período de retrocesso na opinião pública no Brasil, diante do qual os indígenas não estão conseguindo construir uma narrativa, um posicionamento suficiente de modo a estar à altura dos ataques contra seus direitos, suas terras."
(Jornalista)
“Quem está chegando agora ao debate tem a impressão de que tudo começou com Bolsonaro. Bolsonaro apenas escancara um conflito narrativo que já estava colocado, e que ainda está no coração da própria esquerda.”
(Comunicólogo)

Por futuros ancestrais radicalmente coletivos 

Para uma parcela dos públicos engajados/interessados, uma outra narrativa das mais importantes para o momento atual no Brasil é a que fortaleça a coletividade e que ofereça caminhos comuns, mais universais, para o país.

“A gente não pode se esquecer que ainda falta muito para uma melhor compreensão por parte da sociedade brasileira. Faltam narrativas com contextualização, com abordagens didáticas, que dialoguem com a sociedade brasileira como um todo. Não pode esquecer disso."
(Roteirista)
“Acredito que seja necessário nesse momento se afastar da linguagem da guerra ou ativista em direção ao inter-relacionamento, à interdependência e ao interseccional.”
(Comunicador)
Crédito: Futuros Indígenas 
“Nós temos que ser capazes de criar essa narrativa e projetar futuro e sonho. De alguma forma, a gente, em alguns momentos, acaba caindo na armadilha de fazer resistência e confronto e perde a capacidade de projetar o sonho. Acho que temos que ser capazes de retomar a projeção de um sonho. Eu cresci na militância de esquerda e, certo ou errado, a gente tinha um sonho. O nosso sonho era transformar o mundo, não era nada menos do que isso. Está faltando essa projeção de sonhos mais generosos com a humanidade. Acho que esse é um desafio de narrativa importante.”
(ONG nacional)
“O tom certo para o momento atual é muito difícil de comunicar. A gente tem que entender que aquele futuro de muitas posses individuais, cada um de nós com o seu computador, dois carros na garagem etc.,  está cada vez mais longe. Mas, a nossa tarefa aqui, como diz a Donna Haraway, é tentar tornar o antropoceno um limiar o mais curto possível. A gente tem que se voltar para a regeneração do planeta, fortalecer coletividades e buscar de volta a alegria na vida. Ao mesmo tempo, a gente vai ter que fazer o luto do que já passou e que não vai voltar mais, inclusive o luto de muitos dos nossos projetos pessoais.”
(Filósofa)
“Como diz o Eduardo Viveiros de Casto, a indianidade é um projeto de futuro, não uma memória do passado.”
(Cineasta)
Legenda: Mais de 7000 indígenas, de 200 povos, no Acampamento Terra Livre, em Brasília, que em 2022 completou 18 anos
Credito: Mídia Ninja

Públicos não engajados