Capítulo 1

Apresentação e metodologia

Bem-vindxs à pesquisa Narrativas Ancestrais, Presente do Futuro, que mapeou e analisou as percepções sobre os povos indígenas e as principais narrativas deles e sobre eles no Brasil na última década.

Coordenado pela jornalista Cristiane Fontes, Krika, da Amoreira Comunicação, o projeto contou com ampla análise documental, 350 entrevistas com diferentes segmentos da sociedade brasileira, desde lideranças indígenas até eleitores de perfil conservador, e um detalhado mapeamento sobre a evolução das narrativas sobre povos tradicionais nas redes sociais.

Krika e sua equipe conduziram entrevistas em profundidade com 250 pessoas com os seguintes perfis: lideranças de movimentos sociais, antropólogos, jornalistas, cineastas, artistas, juristas, ativistas, comunicadores e lideranças de organizações não-governamentais (ONGs) ambientalistas e indigenistas do país, além de pessoas em maior ou menor grau engajadas, interessadas, ou relevantes para o debate no Brasil, tais como cientistas políticos, comunicólogos, editores, autores e representantes de agências de pesquisa de tendências de comportamento e inovação. Esse grupo, que passamos a chamar de públicos engajados/interessados, incluiu, também, jornalistas e correspondentes internacionais, doadores e representantes da sociedade civil no exterior.

Ainda que seja uma análise sobre as percepções do restante da sociedade a respeito do que é dito por indígenas e sobre eles, não tínhamos como conduzir essa pesquisa sem ouvir algumas das principais vozes indígenas hoje no Brasil — lideranças, pesquisadores, artistas, comunicadores e influenciadores. São essas pessoas as protagonistas e criadoras de muitas das narrativas aqui debatidas, sendo essa uma das principais novidades da última década.

O roteiro das entrevistas incluiu questões sobre as principais narrativas, mensagens, vozes, organizações, momentos-chave, imagens icônicas, campanhas de comunicação, cobertura da grande imprensa, relevância de estudos e dados e a produção de conteúdos nas redes sociais. Também perguntamos sobre o papel da arte e da cultura e os principais aliados, os valores e caminhos para dar mais visibilidade, construir uma cultura de respeito e fortalecer os direitos dos povos indígenas no país nos próximos anos.

Além disso, foram entrevistados representantes do agronegócio envolvidos com a agenda climático-ambiental para mapear, principalmente, suas percepções sobre as principais narrativas no Brasil a respeito da importância das florestas para a mitigação das mudanças climáticas, com a intenção de verificar se e como os povos tradicionais eram descritos e apresentados por esses atores como parte do debate.

A empresa de pesquisa e de inteligência de mercado Ipsos desenvolveu o componente da pesquisa com o grupo que chamamos de públicos não engajados, entrevistando 100 pessoas: eleitores de perfil conservador e formadores de opinião, neste caso um grupo composto por lideranças políticas, economistas e líderes empresariais.

As entrevistas da Ipsos buscaram mapear as percepções e os sentimentos desses públicos sobre povos indígenas e comunidades tradicionais, o que compreendem sobre suas demandas e representatividade, a importância e o lugar desses povos na sociedade brasileira, com enfoque na compreensão sobre a relação e a importância deles para agenda climático-ambiental, quais são as notícias que recebem sobre esses assuntos, quais fontes de informação são mais importantes e quais suas projeções de futuro para essas populações. Esses segmentos também avaliaram peças de campanhas e de comunicação desenvolvidas por e sobre povos tradicionais nos últimos anos.

A Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (DAPP/FGV) analisou a evolução das narrativas no Facebook, YouTube e Instagram, entre 2011 e 2021, e no Twitter, entre 2019 e 2021, com o objetivo de identificar a evolução dos principais temas, menções, atores, campanhas e eventos.

Ainda que um recorte temporal muito curto, a escolha dos últimos dez anos foi intencional, por vários motivos, entre os quais: (i) a crescente evidência científica e reconhecimento da importância das terras indígenas para as soluções climáticas; (ii) a maior visibilidade global dada à criminalização dos chamados defensores ambientais e à violência contra eles; (iii) o fortalecimento do movimento indígena e das lideranças e do ativismo feminino; (iv) o aumento expressivo da presença de estudantes indígenas nas universidades, provocando a academia sobre o que é saber; (v) conhecimento e tecnologia, e a atividade de influenciadores nas redes sociais, em comunicação direta com a sociedade, desconstruindo estereótipos e preconceitos; e fenômenos que fomos conhecendo ao longo da pesquisa, como a emergência da arte indígena contemporânea, a polifonia dos cinemas indígenas e diversos sábios, anciões, mestres e criadores de diversas áreas.

Esse período também foi fortemente marcado por graves retrocessos e alguns dos piores crimes ambientais da história do país: desde a construção de Belo Monte e os planos para a construção de usinas hidrelétricas no rio Tapajós durante o governo de Dilma Rousseff até a política anti-indígena de Jair Bolsonaro, apoiada também por ataques permanentes aos direitos indígenas com desinformação e fake news. O Brasil passou de líder climático global, com políticas inovadoras de combate ao desmatamento, a um país cujo governo é tomado pelo pensamento militar sobre a Amazônia e por negacionistas um país agora lembrado por Brumadinho e Mariana, pelo Pantanal consumido pelo fogo e (pela volta de) recordes de desmatamento na Amazônia e de assassinatos de indígenas.

A impunidade se perpetua e, agora, a ilegalidade e o crime organizado se encontram em territórios indígenas e avançam sobre novas fronteiras da maior floresta tropical do mundo.

O projeto foi conduzido ao longo de 2021, ano em que o mundo e o Brasil foram severamente impactados pela Covid-19 e por muitas crises que se sobrepõem no país. Esses fatores afetaram não apenas o cronograma do projeto, devido à dificuldade em confirmar e realizar algumas das entrevistas, mas também o que alguns dos participantes puderam compartilhar conosco, especialmente sobre oportunidades e futuros.

As diferenças entre as percepções dos indígenas e públicos engajados e as dos públicos não engajados, ainda que previsíveis e esperadas, são gigantescas e espelham os problemas históricos de um projeto de país que vem sendo narrado e ditado por aqueles que há séculos detêm o poder às custas do apagamento da sociodiversidade brasileira.

Não há uma única narrativa, nem soluções fáceis ou imediatas. Além do atual contexto político, existem falhas imensas, falta de debate público, encontros e diálogos sobre as nossas diferenças e divergências.

A pesquisa se atreve, entretanto, a recomendar uma série de ações que poderiam ser fortalecidas, criadas e testadas pela sociedade civil, pela filantropia, pela academia, por políticos, jornalistas, enfim, aqueles que compõem a nossa sociedade, possivelmente interessados. Elas evocam mais coletividade, interdependência, resiliência, adaptação, criatividade, beleza e encantamento, entre outros valores que alicerçam os povos originários no Brasil.

Que você encontre aqui material para reflexão e para ativar a sua imaginação. Que possamos regenerar o país do futuro, ainda preso ao pior do seu passado.

Como diz Ailton Krenak, “nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover”.

Legenda: Mulheres Maxakali na 1ª Marcha das Mulheres Indígenas
Crédito: Apib Comunicação

Povos indígenas e comunidades tradicionais