O Acampamento Terra Livre (ATL), mobilização nacional realizada durante o Abril Indígena, em Brasília, e a ocupação de espaços icônicos da capital federal foram os eventos/momentos-marco mais citados por públicos engajados/interessados.
O ATL foi descrito como case de mobilização pelas marchas, protestos e atos de resistência e como um evento de enorme importância para a conjunção interna do movimento indígena. A beleza e a diversidade dos cantos, danças e manifestações culturais espontâneas dos ATLs também foram destacados.
O alcance dos ATLs foi questionado por alguns dos entrevistados, que ainda o veem como muito voltado e pensado para os militantes e apoiadores do movimento indígena. Alguns dos entrevistados não o citaram espontaneamente ou disseram não conhecê-lo.
As Marchas das Mulheres Indígenas foram o segundo evento mais citado, especialmente no momento em que elas se juntam à Marcha das Margaridas. Em 2019, o evento reuniu 2.500 mulheres de mais de 113 povos indígenas de todas as regiões do Brasil.
A inserção dos indígenas na vida político-partidária, em particular, a eleição da deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR) e a candidatura de Sônia Guajajara à vice-presidência em 2018, foi apontada como o evento mais importante dos últimos dez anos. “A participação de uma indígena na chapa presidencial é uma ruptura no imaginário brasileiro.”
A oposição à construção da usina hidrelétrica de Belo Monte e a autodemarcação da Terra Indígena Sawré Muybu do povo Munduruku também estiveram entre os eventos mais lembrados. Diversos entrevistados apontaram que Belo Monte gerou campanhas de comunicação e alianças nacionais e internacionais inovadoras pela proteção da floresta, maior intolerância a grandes obras na Amazônia, ao menos por parte de um segmento da elite cultural do país, e uma oposição à obra, que ainda permanece ativa. “Belo Monte, que foi uma derrota, deixou a marca e ações de luta e resistência que permanecem até hoje, com a incansável Antonia Melo à frente do Movimento Xingu Vivo para Sempre, na fala sempre contundente da cacica Juma Xipaia, na constituição do Conselho Ribeirinho.”
A Constituição de 1988 foi recorrentemente lembrada como o grande marco e o alicerce das atuais mobilizações do movimento indígena. “A grande mudança é a Constituição de 1988, que promove a ressignificação dos direitos dessas populações, antes tuteladas pelo Estado.”
Eventos globais como as conferências climáticas e o vertiginoso crescimento do interesse internacional pelo Brasil foram os principais eventos/momentos-marco por públicos interessados, mas não engajados, por representantes do agronegócio, ONGs nacionais e internacionais e por correspondentes estrangeiros – "são momentos catalisadores de novas narrativas”.
Doadores e ONGs internacionais destacaram ainda a turnê de uma delegação de lideranças indígenas por 12 países da Europa em 2019 para denunciar as violações contra os povos indígenas e o meio ambiente e o assassinato de defensores ambientais, em especial Paulino Guajajara, também citado por outros segmentos no Brasil.
O Código Florestal apareceu nas entrevistas de um número bem menor de pessoas, especialmente os representantes do agronegócio, que o apontaram como um marco importante. Ambientalistas e representantes do agronegócio criticaram a baixa e inadequada implementação da lei.
Os públicos não engajados não mencionaram eventos específicos, com exceção dos jornalistas regionais, que citaram os jogos indígenas, e alguns políticos, que mencionaram a participação de indígenas em eventos e audiências públicas no Congresso Nacional.
Ainda que a pergunta fosse sobre eventos e momentos-marco dos povos indígenas no Brasil e pelo fortalecimento de seus direitos, as menções às eleições e a Jair Bolsonaro acabaram, compreensivelmente, sendo inevitáveis devido à agenda escancaradamente anti-indígena do atual governo brasileiro. Mesmo entre os formadores de opinião dos públicos não engajados, o impacto do governo federal em exercício, abertamente contrário aos povos tradicionais, foi reconhecido e citado.
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As eleições e o governo de Jair Bolsonaro acabaram, compreensivelmente, aparecendo em muitas respostas.
A agenda escancaradamente anti-indígena antes e pós eleições, o desmantelamento de políticas e órgãos públicos, a militarização de instituições como a Fundação Nacional do Índio (Funai), os níveis recordes do desmatamento, a conivência e o estímulo ao avanço da ilegalidade e criminalidade na Amazônia, a perseguição e a produção de fake news sobre os povos indígenas, a cooptação de lideranças, a atuação genocida durante a pandemia e a contínua violação de direitos, a produção de contranarrativas e a dramática situação político-econômica do país foram detalhadas por muitos dos indígenas e públicos engajados – mais em Dos muitos desafios.
Alguns entrevistados fizeram questão de localizar a desconstrução da agenda socioambiental a partir do governo de Dilma Rousseff.
Um grande número de entrevistados fez questão de destacar a Constituição de 1988 como o grande marco histórico e alicerce das atuais mobilizações indígenas.
A força, a organização e a coesão do movimento indígena
O Acampamento Terra Livre (ATL), “mobilização nacional para tornar visível a situação dos direitos indígenas e reivindicar do Estado brasileiro o atendimento das suas demandas”, foi o evento mais citado por indígenas e por públicos engajados/interessados.
Diversos entrevistados descreveram o ATL como o que há atualmente de mais representativo da força, da organização e coesão do movimento indígena.
A ocupação de espaços icônicos e de poder em Brasília, os confrontos com violência ou respostas não violentas à repressão policial e um conjunto de ações e imagens dos atos organizados, como os mais de 200 caixões deixados no lago do Congresso, as ruas de Brasília manchadas de vermelho em alusão ao sangue indígena e violência contra os povos indígenas foram descritos como os elementos mais marcantes dos ATL.
A beleza e a diversidade dos cantos, danças e manifestações culturais espontâneas, elementos que fazem parte dos acampamentos, foram bastante elogiadas, mesmo por aqueles que não estiveram no evento presencialmente. Alguns desses momentos, inclusive, viralizam nas redes.
Vídeo emocionante do Alass Derivas (@derivajornalismo no Instagram).
Guaranis depois de saírem da Praça dos Três Poderes, atravessando a Esplanada dos Ministérios, terminam a caminhada em uma canção maravilhosa.
Também foram citadas pontualmente as versões dos ATL organizadas durante a pandemia, com pessoas admiradas com a diversidade de vozes e a qualidade de conteúdo e produção desses eventos. O ATL 2021, descrito como a “maior mobilização virtual dos povos indígenas do Brasil, com 25 dias de mobilização seguidos e mais de 60 atividades online”, teve como tema ‘A nossa luta ainda é pela vida, não é apenas um vírus’.
“Elas podem curar o mundo”
A 1ª Marcha das Mulheres Indígenas foi o segundo evento mais citado, especialmente no momento em que as mulheres indígenas se juntam à Marcha das Margaridas. A marcha reuniu 2.500 mulheres de mais de 113 povos indígenas de todas as regiões do Brasil, em 2019, com o tema “Território: Nosso Corpo, Nosso Espírito!”.
Não houve dúvidas sobre a importância desses eventos de mobilização em Brasília, mas as opiniões foram divididas e incertas sobre o alcance. Alguns dos doadores, cineastas, pesquisadores e jornalistas da grande imprensa ouvidos não conheciam o evento, ou não acreditam que tenha “furado bolhas”.
Um dos jornalistas internacionais ouvidos pela pesquisa destacou que os ATLs tendem a gerar boas fotografias, mas não necessariamente pautas.
Os ATLs não foram citados por segmentos não engajados com o tema.
A inserção da(o)s indígenas na vida político-partidária
Além dos ATL, a inserção dos indígenas na vida político-partidária, em particular a eleição de Joênia Wapichana no Legislativo e a candidatura de Sônia Guajajara à vice-presidência em 2018, foram apontados como dois dos eventos mais importantes dos últimos dez anos – mais em Principais vozes.
A campanha de Sônia Guajajara foi lembrada não só pelo seu ineditismo, mas também pelos apoios construídos nesse processo com figuras públicas, movimentos sociais e artistas como Caetano Veloso e Maria Gadú.
A resistência à construção da hidrelétrica de Belo Monte também foi um dos momentos-marco mais citados por públicos engajados/interessados. A decisão de seguir adiante com a obra, apesar de todas as evidências, estudos e campanhas contrárias, foi apontada como central para entender o que acontece com a Amazônia hoje, sendo lembrada como um legado do PT e do governo de Dilma Rousseff.
Diversos entrevistados apontaram que Belo Monte gerou campanhas de comunicação e alianças nacionais e internacionais inovadoras pela proteção da floresta, uma maior intolerância a grandes obras na Amazônia, ao menos por parte de uma parte da elite cultural do país e, principalmente, uma oposição à obra que ainda permanece muito viva, ativa.
São muitas, são muito diversas e estão muito vivas as ações de luta e resistência em oposição à hidrelétrica.
A organização Uma Gota no Oceano, um desdobramento do movimento que começou como uma campanha em linguagem irreverente, com a participação de vários artistas globais, questionando a construção da hidrelétrica de Belo Monte, acaba de completar 10 anos. ”Maria Altamira”, romance de Maria José Silveira, lançado em 2020, dedicado ao povo Yudjá e aos beiradeiros de Altamira, nos confronta com a questão: onde estávamos enquanto toda essa destruição se implantava? A performance tecno-xamânica "Altamira 2042", da artista Gabriela Carneiro da Cunha, que dá voz ao rio e às populações ribeirinhas que vivem as consequências da catástrofe provocada pela construção da hidrelétrica, esteve em extensa turnê pela Europa no fim de 2021. O não cumprimento de condicionantes por parte da Norte Energia foi alvo de uma audiência pública pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Vale, da Assembleia Legislativa do Pará, também no fim de 2021. Uma das mais importantes jornalistas do país, Eliane Brum, que se mudou para Altamira em 2017, por uma questão de coerência e por acreditar que a gente precisa deslocar os conceitos do que é centro e o que é periferia, acaba de lançar “Banzeiro òkòtó: uma viagem à Amazônia Centro do Mundo”. O filme “Volta Grande”, dirigido por Fábio Nascimento, sobre as famílias ribeirinhas que lutam para retornar ao seu território nas margens do rio Xingu, de onde foram expulsas pela hidrelétrica de Belo Monte, no Pará.
Algumas pessoas, entretanto, questionaram o que do processo foi realmente compreendido pela sociedade e não enxergaram muito mais do que as perdas à floresta e às populações locais.
Altamira, município próximo à usina, segue entre aqueles com as maiores taxas de desmatamento da Amazônia e um dos mais violentos do país.
Autodemarcação do território Munduruku e proteção do Tapajós
Ainda que por um menor número de pessoas entrevistadas e apenas por públicos engajados, o processo de autodemarcação da TI Sawré Muybu do povo Munduruku e a campanha contra usinas hidrelétricas no Tapajós, cuja luta ganhou novas dimensões e ainda mais visibilidade nos últimos anos devido ao agravamento das atividades e dos impactos do garimpo ilegal, também estiveram entre os momentos-marco mais citados.
Legenda: Mapeamento da Terra Indígena Sawré Muybu (PA)Crédito: Coletivo Audiovisual Munduruku
Mais visibilidade, presença e apoios internacionais
Para públicos mais distantes da agenda e para as ONGs e públicos internacionais, as cúpulas do clima e a jornada de uma delegação indígena por 12 países da Europa em 2019 foram apresentadas como os eventos mais significativos.
Um número menor de pessoas atribuiu à Cúpula dos Povos na Rio+20 o início de um processo de conexão mais consistente entre a agenda nacional e internacional, da ligação entre vários povos e movimentos distintos e da construção de agendas coletivas.
As cúpulas do clima e o Acordo de Paris também foram apresentados como eventos importantes por representantes do agronegócio e por públicos interessados, mas não necessariamente engajados.
As entrevistas desta pesquisa foram conduzidas antes da COP26, que teve a maior delegação indígena do Brasil em uma conferência do clima, Txai Suruí como a única brasileira a discursar na abertura da conferência e o anúncio de US$ 1,7 bilhão do Reino Unido, Noruega, Alemanha, EUA, Países Baixos e 17 doadores privados norte-americanos para os povos indígenas, em reconhecimento ao seu papel como protetores do território e aliados na mitigação dos impactos da crise climática.
Crédito: BBC News Brasil
Mais dados e repercussão dos assassinatos de lideranças
O público internacional também destacou os assassinatos de lideranças de povos indígenas e comunidades tradicionais, em especial o de Paulino Guajajara, caso que ganhou atenção da imprensa internacional e cuja imagem ainda circula em protestos pelos direitos dos povos indígenas.
Foi justamente nesta última década que levantamentos globais sobre as ameaças e assassinato dos chamados defensores ambientais se tornaram disponíveis, como o produzido pela Global Witness. É também nesse período que os relatórios sobre conflitos no campo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o relatório anual de violência contra os povos indígenas, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), passaram a ter mais repercussão e seus dados usados fora do país.
Vacina Parente e o enfrentamento à Covid-19
Alguns entrevistados fizeram questão de incluir entre os marcos o protagonismo e a articulação de organizações indígenas e apoiadores no enfrentamento à Covid-19, citando campanhas, ferramentas e denúncias contra o governo.
A ação liderada pelo advogado indígena Eloy Terena, com decisão favorável do Supremo Tribunal Federal (STF) obrigando o Executivo a cumprir com deveres constitucionais durante a Covid-19, foi descrita como “fantástica”, “histórica”.
Segundo levantamento da Apib, já foram registrados mais de 60.000 casos de Covid-19 entre os povos indígenas no Brasil e mais de 1.250 mortes. São mortes como a de Vovó Bernaldina, mestra indígena da cultura Macuxi, avó adotiva do artista Jaider Esbell; Aruká Juma, sobrevivente de um massacre e o último homem de seu povo; Aritana Yawalapiti, um dos principais líderes indígenas do Alto Xingu; Feliciano Lana, artista indígena do Alto Rio Negro; Paulinho Paiakan, uma das mais ativas lideranças na Constituinte e na luta pela demarcação da Terra Indígena Kayapó; e Carlos Terena, criador dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas.
Código Florestal e o acirramento das disputas fundiárias
Um número bem menor de pessoas citou o Código Florestal, de 2012, como um marco, especialmente os representantes do agronegócio. Ainda que a partir de visões distintas, ambientalistas e representantes do agronegócio criticaram a baixa e inadequada implementação da lei.
Jogos indígenas, atos políticos, contatos raros ou inexistentes
Alguns dos entrevistados que estamos chamando de interessados, mas não engajados, não souberam especificar eventos e marcos específicos da última década.
Entre os públicos não engajados/interessados, os políticos e os jornalistas regionais foram os únicos que mencionaram a participação e a organização de eventos com representantes indígenas.
Alguns dos políticos chegaram a relatar a participação de lideranças indígenas em eventos e audiências públicas no Congresso Nacional e os jornalistas regionais destacaram a importância dos jogos esportivos indígenas. Muitos deles já cobriram esses eventos e acreditam que são bons momentos para gerar notícias e divulgar informações para a população geral.
Os economistas e lideranças empresariais que costumam participar de eventos, alguns dos quais ligados à agenda ambiental, apontaram que mesmo nesses momentos não encontram, na maioria das vezes, a presença de representantes indígenas.
A ideia de representatividade para esses segmentos tende a girar em torno apenas da ocupação de espaços institucionalizados de poder, e por isso essa impressão de distanciamento dos indígenas.
Também entre os formadores de opinião de públicos não engajados, o impacto do governo federal em exercício, abertamente contrário aos povos tradicionais, foi reconhecido e citado.