A maior parte dos entrevistados acredita que houve aumento e melhoria da cobertura na última década e que os povos indígenas se tornaram mais visíveis à grande imprensa no Brasil de Bolsonaro. “O presidente colocou a pauta ambiental e indígena no centro do debate político do Brasil.”
Uma parcela dos entrevistados defendeu que o aumento da cobertura também foi resultado de mudanças comportamentais, como o enfrentamento ao racismo, a agenda de representatividade e diversidade, a profusão de conteúdos na internet e nas redes sociais. “Além do texto, você tem uma espécie de extratexto, seja nos comentários, nas redes sociais e nos próprios portais, que vão produzir um novo texto, digamos assim, em todos os sentidos. E ninguém quer ficar levando porrada.”
O Jornal Nacional e o Fantástico foram os programas jornalísticos mais citados como exemplos dessa maior abertura às pautas indígenas. “A pauta socioambiental encontrou, em alguma medida, sensibilidade até na Globo.” Também da Rede Globo, o programa Falas da Terra foi descrito como um marco da TV brasileira. “Fiquei impressionada, tem uma força inédita.”
Em geral, os elogios dos públicos engajados/interessados foram, quase que em sua totalidade, dirigidos a jornalistas e programas e não a veículos de comunicação. André Trigueiro, Rubens Valente e Eliane Brum foram os jornalistas mais citados pela excelência, relevância e alcance de seus trabalhos.
A emergência de veículos independentes como Repórter Brasil, Agência Pública, InfoAmazonia e Amazônia Real foi considerada uma importante mudança na cena midiática do Brasil.
Entre os públicos engajados, apenas um número muito reduzido de pessoas fez menção explícita à cobertura pró-Bolsonaro de veículos de comunicação como a Rede Bandeirantes, que chegaram a dizer que os indígenas poderiam ”tomar até o Morumbi” caso a tese do marco temporal não fosse aprovada, segundo reportagem do The Intercept.
A explosão do desmatamento na Amazônia foi a principal pauta dos últimos anos, na imprensa nacional e internacional. Alguns entrevistados acreditam, porém, que faltam informações mais aprofundadas sobre as causas do desmatamento, assim como ouvir as populações locais mais afetadas.
Para diversos entrevistados, o incremento da cobertura sobre os povos indígenas é considerado “insuficiente” e “insatisfatório” diante das omissões e distorções históricas e da diversidade de povos e realidades em todo o país, não apenas na Amazônia.“São 9,5 minutos para o poder hegemônico e 55 segundos de ‘concessão’ para o campo que defende o planeta, que luta por direitos etc. Brincadeira, né?”
Diversas pessoas destacaram a necessidade de que seja dada mais visibilidade aos povos de outros biomas brasileiros, aos que vivem não apenas nos territórios, ao trânsito cidades-aldeias e, aos que estão nas cidades. “Quando se fala de índios, a maior parte da população pensa nos índios do Xingu, no Quarup. A mídia mostra sempre as mesmas comunidades, e as pessoas acham que é tudo igual.”
A falta de cobertura qualificada e consistente sobre os direitos territoriais dos povos indígenas foi frequentemente problematizada, questão que ganhou mais visibilidade pública durante o julgamento da tese do marco temporal pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Além disso, alguns entrevistados mencionaram sentir falta de reportagens sobre o cotidiano dos povos indígenas em seus territórios, sobre as questões que permeiam suas vidas no presente e sobre seus modos de vida, saberes, culturas e cosmologias, sem exotismos. "As pessoas se casam, as pessoas morrem, as pessoas amam, enfim, as pessoas vivem.”
Outras críticas frequentes à cobertura da imprensa foram a generalização, o uso de termos inadequados e o fato de jornalistas ainda ouvirem cientistas, e não os indígenas, como especialistas.
A crise financeira da imprensa foi descrita como uma limitação para a produção de reportagens investigativas e ao redor do Brasil, restringindo o que sabemos sobre o país à agenda política em Brasília.
Parte do público engajado/interessado acha que os indígenas deveriam ocupar, entre outras telas, também as da grande imprensa. “Bom mesmo seria se comunicação fosse um direito, assim como saúde e educação.”
“Precisamos encantar. Acho que muitas vezes essa cobertura desencanta, ela é contaminada, dominada pelo opressor. Claro, é necessária a denúncia, mas a gente tem que mostrar essa beleza, que é absurda, de conhecimento, de línguas, de saberes.”
Entre os formadores de opinião dos públicos não engajados e população geral, muito pouco do que sabem sobre o assunto é baseado na cobertura da grande imprensa. Os veículos mais mencionados foram Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, CNN, GloboNews, Jornal Nacional e Jornal da Record. Com exceção dos jornalistas regionais, as concepções sobre os povos indígenas parecem ser formadas a partir de fragmentos de informação, às vezes, apenas títulos de reportagens ou de publicações em redes sociais.
Plataformas como G1, UOL e Terra estiveram entre os veículos que se destacaram no acúmulo de engajamento no Facebook na última década, segundo o levantamento da DAPP/FGV.
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A pesquisa buscou identificar a opinião dos públicos engajados/interessados sobre a cobertura da grande imprensa no Brasil a respeito de povos indígenas e de comunidades tradicionais e as principais fontes de informação de formadores de opinião não engajados e da população geral.
Os últimos 10 anos foram fortemente marcados pela consolidação da internet como principal fonte de informação, pelo agravamento da crise financeira e de representatividade da grande imprensa, pelo fenômeno da desinformação e fake news e pelo crescimento e fortalecimento do jornalismo investigativo independente no Brasil. Apesar disso, a mídia tradicional, especialmente os canais de televisão, ainda tem enorme relevância e inigualável alcance, poder e influência no país.
Uma pesquisa realizada pelo PoderData, em outubro de 2021, mostra que a televisão ainda é um dos meios mais usados por brasileiros em busca de informação (40%), ficando atrás apenas da internet (43%), que soma sites e portais (21%) e as redes sociais (22%), onde também circulam amplamente conteúdos produzidos pela mídia tradicional.
Muitos foram os adjetivos pouco elogiosos entre os públicos engajados/interessados para descrever a cobertura da grande imprensa sobre povos indígenas no Brasil. “Tímida”, “frouxa”, “irregular”, “ausente”, “trágica”, “esparsa”, “problemática”, “pobre”, “preconceituosa”, “ignorante”, “alienada”, “tateante”, “reativa”, “paternalista”, “colonialista”.
Ainda assim, a maior parte dos entrevistados acredita que houve aumento e melhoria na última década e que os povos indígenas e comunidades tradicionais se tornaram mais visíveis para a grande imprensa no Brasil de Bolsonaro.
Demarcando as telas, representatividade e produção de fatos políticos
Uma parcela dos entrevistados defendeu que o aumento da cobertura jornalística também foi resultado de mudanças comportamentais no Brasil e ao redor do mundo, como o crescimento e o fortalecimento do enfrentamento ao racismo, a emergente agenda de representatividade e diversidade, o crescimento e a profusão de conteúdos na internet e nas redes sociais, que tornaram evidentes o grande interesse e a demanda do público por esses assuntos.
Legenda: Thiago Karai participa da série E Eu?, na qual minorias pouco representadas na mídia apontam problemas na relação com a imprensa
Crédito: Folha de São Paulo
A mobilização incessante do movimento indígena contra o avanço da Covid-19 nos territórios e as denúncias sobre a omissão e a violação do direito à saúde, por parte do governo, também foram apontadas como uma das razões pelo aumento da cobertura pela grande imprensa.
Coberturas exemplares no Fantástico e no Jornal Nacional
Diversos entrevistados dos públicos engajados escolheram programas da TV Globo, notadamente Fantástico e Jornal Nacional, para exemplificar a frequência e aprimoramento da cobertura da imprensa na última década, muitas pessoas se referindo na maior parte das vezes aos últimos anos.
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Falas da Terra: um marco na TV brasileira
O especial Falas da Terra, que reuniu 21 indígenas para falar sobre os povos indígenas no Brasil, foi considerado “excepcional”, “marcante”, “histórico”, “imperdível” por diversos entrevistados.
Descrito na página da Globoplay como um programa que “lança luz à pluralidade e à luta dos indígenas pelo direito de existirem, em um resultado histórico de valorização de suas culturas”, foi exibido no Dia dos Povos Indígenas em 2021.
A produção contou com direção artística de Antônia Prado, à frente também de Falas Negras e Falas Femininas, consultoria de Ailton Krenak, e coautoria dos artistas e cineastas indígenas Ziel Karapotó, Graciela Guarani, Olinda Tupinambá e Alberto Álvares Guarani.
A jornalista Cristina Padiglione, que escreve sobre assuntos relacionados à televisão desde 1990 e mantém na Folha de São Paulo o blog Telepadi, elogiou o programa por ter sido feito por militantes indígenas, mas não para a militância indígena, e por enfrentar e responder os mais diferentes preconceitos contra os povos indígenas no Brasil. Afirmou ainda: “a TV brasileira nunca havia feito um tributo aos indígenas disposto a provocar reflexões como essas”.
Mais jornalistas, foco e atenção de nomes consagrados
Uma parte dos entrevistados pontuou que os povos indígenas “estão finalmente na pauta”, que há mais jornalistas cobrindo o tema, incluindo nomes dos mais consagrados e respeitados do país.
Rubens Valente, Eliane Brum e André Trigueiro foram os jornalistas mais citados pela qualidade e pela relevância do trabalho.
Rubens Valente foi apresentado como repórter “excepcional”, “inigualável”, “aquele que melhor conhece as histórias dos massacres dos povos indígenas e os meandros das ofensivas do Estado brasileiro”, “o que cobre com mais consistência esse tema a partir de Brasília". Já Eliane Brum foi lembrada pela “sofisticação”, pela “densidade” e “poética” de seus textos, pela “coragem e ousadia", por “nos fazer repensar o Brasil a partir da Amazônia” e pelo “alcance fora do país''. André Trigueiro foi mencionado pela “relevância”, “contundência” e “pelos comentários afiados sobre os retrocessos da agenda socioambiental não só na TV, mas também nas redes sociais”, muitas vezes pautando também outros jornalistas.
Em geral, os elogios dos públicos engajados/interessados foram quase em sua totalidade a jornalistas e programas e não a veículos de comunicação, com exceção das agências de mídia independente.
Consumo de fragmentos da imprensa, a mídia pró-Bolsonaro
Entre os formadores de opinião dos públicos não engajados e população geral, muito pouco do que sabem sobre assuntos relacionados aos povos indígenas é baseado na cobertura da mídia tradicional.
Os veículos mais mencionados por eles foram Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, CNN, GloboNews, Jornal Nacional e Jornal da Record, e plataformas como G1, UOL e Terra. Mesmo entre jornalistas regionais, essas são fontes de informação importantes e consultadas diariamente. Os jornais locais também são acompanhados pela população geral e pelos formadores de opinião da região Norte — mais em Públicos não engajados.
Com exceção dos jornalistas regionais, as concepções sobre os povos indígenas parecem ser formadas a partir de fragmentos de informação, às vezes, apenas títulos de reportagens ou de publicações em redes sociais, com pouco aprofundamento.
Embora os políticos também sejam leitores das mesmas fontes que os demais, baseiam suas decisões em fontes de informação específicas, como os resumos analíticos elaborados por assessores de gabinete. Empresários e economistas também citaram fontes específicas e a imprensa estrangeira, também uma referência importante para os representantes do agronegócio. O segmento de economistas foi o que demandou informações para avançar em suas reflexões sobre o assunto.
Uma questão muito presente nas entrevistas com os públicos não engajados foi a desconfiança em relação às fontes de informações. Eles tendem a questionar a qualidade das informações sobre assuntos considerados polêmicos, entre os quais se incluem povos indígenas e tradicionais e temas ambientais. Em particular, quem mais reclama da polarização, menos confia nas informações existentes, especialmente na mídia.
Apenas um número reduzido de pessoas engajadas fez menção à cobertura pró-Bolsonaro em veículos de comunicação como a Record, o SBT e o Grupo Bandeirantes.
De acordo com reportagem do Poder 360, a TV Record foi a emissora que mais se beneficiou dos recursos destinados pela Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom), responsável pela liberação de verbas e gerenciamento de contratos publicitários firmados pelo governo federal, nos anos iniciais do governo Bolsonaro. Entre 2019 e 2021, a TV Record recebeu R$ 58,8 milhões; o SBT, R$ 53,5 milhões; e a TV Globo, R$ 47,2 milhões. Por conta de uma determinação do Tribunal de Contas da União (TCU), a TV Globo voltou a ser contemplada com a maior fatia do investimento de publicidade estatal federal em 2021.
Além disso, a gestão de Jair Bolsonaro pagou pelo menos R$ 4,3 milhões para apresentadores de TV, radialistas e influencers fazerem merchandising de seu governo, como Datena, Luciana Jimenez e Sikêra Júnior, segundo reportagem do The Intercept Brasil.
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Mobilização histórica vs omissões e fake news na imprensa
A falta de cobertura qualificada e consistente sobre os direitos territoriais dos povos indígenas foi bastante problematizada publicamente durante o julgamento da tese do marco temporal pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em agosto de 2021, quando foi organizada a maior mobilização do movimento indígena desde a redemocratização do Brasil.
Em artigo publicado na Carta Capital, a jornalista, mestra em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e integrante do Conselho Diretor do Intervozes Iara Moura descreve a cobertura da grande imprensa sobre esse evento marco: “Os televisivos SBT Brasil e Jornal Nacional noticiaram o assunto pela primeira vez na terça-feira, dia 24. O Jornal Nacional, da Rede Globo, veiculou nota coberta de cerca de 20 segundos, factual, sem aprofundar o tema. O SBT optou por uma chamada sensacionalista digna dos chamados ‘caça-cliques’: enquanto o âncora anunciava a reportagem, o letreiro exibia: ’7 set? Protesto? O que é o acampamento na Esplanada’. A desinformação de que o protesto seria um preparativo para as manifestações pró-Bolsonaro convocadas para o dia 7 de setembro circulou em Whatsapp e foi desmentida por manifestantes no Twitter“.
A grande imprensa foi questionada nas redes sociais, em artigos de opinião e cartas abertas, como essa, de Mari Stockler, Maureen Santos e mais nove assinaturas, em carta enviada à Folha de São Paulo: “É chocante a grande imprensa não pautar, com destaque e profundidade, a ameaça sobre as populações indígenas. Enquanto o STF julga se as demarcações de terras indígenas devem seguir o chamado marco temporal, o Brasil assiste à maior mobilização indígena de todos os tempos. Mas a imprensa tem preferido ignorar. Portanto, perguntamos ao Brasil e a editores da Folha, recorrendo a uma provocação da líder indígena Sônia Guajajara: até quando toda essa violência não vai mexer com a sua sensibilidade?”
Uma das exceções foi a cobertura da equipe do Profissão Repórter, que acompanhou os bastidores da mobilização. As repórteres Mayara Teixeira e Nathalia Tavolieri registraram desde a montagem das primeiras barracas até o início do julgamento. O repórter Caco Barcellos esteve em Santa Catarina com os Xokleng, povo indígena que está no centro da discussão jurídica. O restante da equipe na Terra Indígena do Jaraguá, em São Paulo e em uma expedição com os indígenas Munduruku, no Pará.
“Enquanto o assunto tem tido pouco destaque na imprensa em geral, na Band ele tem sido a pauta principal. Nas últimas semanas, a cobertura tem sido diária e invariavelmente defende o ponto de vista dos ruralistas. Também pudera, o dono do Grupo Bandeirantes, João Carlos Saad, mais conhecido como Johnny Saad, é fazendeiro e criador de gado. Além disso, tem sido o principal divulgador dos interesses dos barões do agronegócio por meio de seus canais de televisão. O Grupo Bandeirantes, cujo nome é uma homenagem aos homens que escravizaram e assassinaram os povos indígenas no século 17, conta com dois canais de televisão a cabo inteiramente dedicados ao agronegócio e financiados por ele por meio de anúncios: o Terra Viva e o AgroMais. Jornalistas dos canais do grupo chegaram ao cúmulo de dizer que os indígenas poderiam ‘tomar até o Morumbi’”.
Ainda durante o julgamento da tese do marco temporal, um encarte publicitário publicado no jornal O Estado de São Paulo, sem informar quem financiava a peça, indicava a existência de um estudo, sem mencionar a fonte, apontando impacto negativo de R$ 1,95 bilhão em Mato Grosso com a ampliação ou criação de terras indígenas no caso de rejeição do marco temporal. O anúncio foi amplamente criticado nas redes sociais.
O Observatório Socioambiental de Mato Grosso (Observa-MT) publicou uma nota de repúdio na qual explicava que “hoje, de acordo com dados da Funai (Fundação Nacional do Índio), Mato Grosso conta com pelo menos 31 processos de reivindicação de reconhecimento de terras indígenas e 16 com o status formal ‘em estudo’, sem qualquer informação sobre seu perímetro. Ou seja, os números voluptuosos propagandeados pelo jornal são mera especulação”.
Segundo pesquisa do Reuters Institute for the Study of Journalism, são justamente esses veículos que detêm maior nível de confiança por parte do público - Grupo Record (68%), seguido do Grupo Bandeirantes e SBT (64%).
Amazônia, cobertura aquém da megadiversidade e novas abordagens
A explosão do desmatamento na Amazônia foi a principal pauta dos últimos anos nessa agenda, na imprensa nacional e internacional. Os outros temas mais citados foram a conservação ambiental de territórios indígenas, o desmonte de políticas públicas socioambientais, a explosão da invasão e da mineração em territórios indígenas, as grandes obras de infraestrutura, os crimes ambientais (como os de Mariana e Brumadinho) e os impactos, perdas e mortes por Covid-19. Ou seja, assuntos majoritariamente atrelados à agenda ambiental. Um número bem menor de pessoas citou a emergência de pautas nos cadernos culturais sobre artistas, escritores e influenciadores indígenas.
Houve quem criticasse o fato da urgência e relevância da emergência climática, da pauta ambiental e da defesa dos povos indígenas serem ainda tratadas como agendas à parte e menores em relação ao restante da cobertura jornalística, e não com a importância que deveria ser dada ao assunto — a Folha de São Paulo com apenas um repórter na Amazônia, Fabiano Maisonnave, e jornais sem nenhum correspondente na região foram apresentados como exemplos disso.
Em 2019, o The Guardian se comprometeu a cobrir a crise climática com atenção sustentada e o destaque que o tema exige, adotando uma nova linguagem para a cobertura. O jornal deixou de veicular anúncios de empresas de combustível fóssil, uma inovação entre as principais empresas de mídia, anunciou a meta de chegar até 2030 com emissões líquidas zero e hoje é um dos participantes mais ativos do projeto Covering Climate Now.
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Amazônia além da taxa de desmatamento
Entre os entrevistados de públicos engajados, uma outra crítica que surgiu à cobertura factual da grande imprensa sobre o desmatamento foi a necessidade de reportagens sobre as taxas de desmatamento também serem contextualizadas e uma preocupação sobre o que essas notícias despertam no público. “Houve um aumento, mas não necessariamente um aprimoramento. O mundo todo fala mais da Amazônia, mas não necessariamente fala melhor.”
Algumas pessoas acreditam que, embora seja positivo que mais notícias e reportagens sobre os índices de desmatamento sejam publicadas, que as causas, as dinâmicas de desmatamento, como a população local está sendo afetada, ainda são aspectos, de maneira geral, pouco abordados nas reportagens sobre os dados mensais ou anuais. Criticam também o fato das fontes de informação serem majoritariamente oficiais, mesmo no atual contexto, e a população local pouco ouvida.
Crédito: CNN
Em 2012, um estudo da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), “O Desmatamento na Amazônia no Foco do Telejornalismo”, já havia identificado que atores do Poder Executivo eram as “vozes” predominantes de mais de 60% das reportagens analisadas pelo projeto. Além disso, a pesquisa mostrava uma cobertura nacionalizada, com pouco enfoque nos estados e municípios e sem agregar como fontes representantes da sociedade civil.
Por outro lado, um pequeno número de pessoas destacou a produção de reportagens investigativas sobre a Amazônia em veículos da imprensa nacional e internacional como também decorrentes de bolsas e novas formas de financiamento, como o Fundo de Jornalismo da Floresta Amazônica do Pulitzer Center, lançado em 2018.
A pesquisa publicada na revista científica Nature, de um estudo coordenado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com a participação de institutos e universidades do Brasil e do exterior — cujos resultados apontam que partes do sudeste da floresta amazônica mudaram de um “sumidouro” de carbono para “fonte” de carbono, como resultado do desmatamento e das mudanças climáticas -, esteve entre as 10 com mais visibilidade na imprensa em 2021, de acordo com uma análise do Carbon Brief.
Durante a entrevista, uma correspondente internacional descreveu sua própria experiência pessoal em compreender a complexidade da agenda: “no começo, quando eu queria entender as causas do desmatamento, eu buscava uma lista, como se uma lista fosse responder a essa pergunta. Na verdade, existe todo um sistema operando nesses locais. Na minha opinião, para uma boa cobertura, é importante entender como esse sistema funciona e como as diferentes partes desses sistemas foram se movendo historicamente até a atualidade. Não foi fácil".
Alguns dos jornalistas mais experientes, cobrindo esse tema há décadas e com compreensão de toda a complexidade da agenda, demonstraram cansaço das dinâmicas de trabalho, da reprodução de velhas notícias como novas e descrença em mudança e contenção da destruição não só da maior floresta tropical do mundo, mas dos biomas brasileiros.
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Saiu antes no The Guardian
Para muitos dos entrevistados de públicos engajados, foi o papel e a cobertura da imprensa internacional que levou, muitas vezes, a imprensa nacional a dar mais atenção a determinados temas.
Diversos assessores de comunicação da sociedade civil, no Brasil e fora do país, disseram que houve um aumento significativo de pedidos de sugestões de dados, fontes e entrevistas a partir de 2018 e uma explosão em 2019.
Os índices recordes de desmatamento na Amazônia foram apresentados como o fator mais importante pelo aumento do interesse dos jornalistas internacionais pelo Brasil nos últimos anos. Outros tópicos listados foram principalmente a violência contra os defensores ambientais e os impactos da produção e do mercado global de commodities agrícolas; e, em menor número, o aumento do garimpo ilegal e a destruição da savana brasileira, o Cerrado.
É importante pontuar que, devido ao agravamento do desmonte da agenda socioambiental, o tema da grilagem de terras também passou a ganhar mais visibilidade. Assim como no Brasil, representantes da sociedade civil internacional acreditam que esse seja um tema que ainda precisa ser mais e melhor apresentado e compreendido pelo público, mesmo o especializado, fora do país.
Os entrevistados estrangeiros foram mais positivos sobre a qualidade da cobertura de imprensa. Alguns entrevistados de ONGs internacionais disseram que o aumento de reportagens sobre o Brasil, o desmatamento da Amazônia e os ataques aos povos indígenas resultaram em mais busca de informações em seus sites e doações de recursos às suas organizações.
Os veículos de comunicação internacionais mais citados foram o The Guardian, seguido pelo New York Times e Reuters. A qualidade do trabalho dos correspondentes internacionais no Brasil também foi elogiada por jornalistas e assessores de comunicação brasileiros.
A imprensa internacional não apenas influencia os jornalistas, mas também foi citada como fonte de informação relevante para os economistas, líderes empresariais e representantes do agronegócio.
Por outro lado, jornalistas enfatizaram ser importante que a imprensa e a sociedade civil no Brasil não restrinjam suas pautas apenas às consideradas relevantes pelos países ricos, do Norte Global, como o desmatamento da Amazônia.
Alguns dos indígenas e um pequeno número dos entrevistados de públicos engajados se mostraram totalmente céticos em relação à grande imprensa.
Crédito: Survival International
Falta de contextualização, omissões e distorções sobre direito à terra
Para diversos entrevistados, o incremento da cobertura é considerado “insuficiente”, “insatisfatório” diante das omissões e distorções históricas e da diversidade de povos e realidades em todo o país, não apenas na Amazônia.
Eles consideram que a imprensa ainda tende a ser “reativa”, "superficial”, e a produção jornalística “pouco ou mal contextualizada”, ou “distorcida”, especialmente quando tratam do direito à terra e conflitos territoriais.
Crédito: Agência Pública
Reportagens sem aprofundamento, sem contexto histórico, sem tratar os direitos constitucionais e sem ouvir os indígenas como fontes de informação foram criticadas e apontadas como responsáveis por reforçar percepções equivocadas dos povos originários.
Para alguns entrevistados não engajados ou mais próximos à agenda ambiental, os conflitos foram associados à falta de oportunidade econômica e não à falta de regularização fundiária, ou à omissão do Estado.
Na tese “Violência simbólica na televisão: cidadania e representação dos povos indígenas na demarcação de terras", Gabriela Sanches de Lima analisou o conteúdo jornalístico televisivo sobre o assunto de demarcação de terras indígenas acerca da PEC 215/2000, proposta de emenda constitucional brasileira que pretende rever direitos já garantidos pela Constituição de 1988 e delegar exclusivamente ao Congresso Nacional o dever de demarcação de territórios indígenas e quilombolas. Em sua conclusão, Gabriela afirma: “Também percebemos que a transmissão do tema da demarcação está condicionada ao factual, ou seja, o jornal só transmite aquilo que aconteceu e se limita nisso. Não aprofunda e nem contextualiza o tema, aproveitando o ocorrido (...). Também notamos que a mídia privada constrói a imagem do indígena ora como invasor e ora como vítima, incapaz de lutar pelos seus direitos sem saírem extremamente prejudicados. Tudo isso corrobora com a definição e explanação de poder e violência simbólicos dissertados por (Pierre) Bourdieu, que explica que, de forma muito sutil, quase sem o espectador se dar conta, a emissora constrói uma identidade sem a condescendência dos povos originários, contribuindo para a manutenção do status quo de povos dominados, colonizados e vulneráveis e não como resistentes e cidadãos de suas histórias. De forma arbitrária, a mídia privada apaga o indígena do campo midiático-social”.
Crédito: Rádio Novelo
O dia a dia, seus modos de vidas, suas culturas
Uma parcela dos entrevistados mencionou sentir falta de reportagens sobre a vida cotidiana dos povos indígenas em seus territórios, sobre as questões que permeiam suas vidas no presente, e também aquelas que valorizem a diversidade de modos de vida, saberes, culturas, cosmologias, mas sem exotismos.
Assim como em outros momentos da entrevista, diversas pessoas destacaram a necessidade de que seja dada mais visibilidade aos povos de outros biomas brasileiros, aos que vivem não apenas nos territórios, ao trânsito cidades-aldeias, aos que estão nas cidades.
Crédito: Sesc Bauru
Crédito: Folha de São Paulo
“Índio genérico", quem fala e racismo e na imprensa
A generalização, o uso de termos inadequados; a necessidade dos jornalistas ouvirem especialistas e não os indígenas como fontes de informação; e abordagens e perguntas inadequadas durante entrevistas foram outras críticas frequentes à cobertura da imprensa.
No artigo “Subjetividade: Ferramenta para um jornalismo mais íntegro e integral”, a jornalista Fabiana Moraes pontua: "é vital compreender que o caminho da objetividade no jornalismo, para além dos procedimentos técnicos, deve ser guiado também pela percepção da sub-representação que atinge diversos grupos sociais, uma sub-representação causada também pelo jornalismo”.
Alguns jornalistas descreveram essa cobertura como sendo bastante “complexa”, “difícil”, e que antropólogos têm sido “mediadores”, “tradutores”, algumas vezes importantes.
O uso de termos considerados inadequados, adotados não apenas pela imprensa, também apareceu nas entrevistas; o porquê de adotar povos originários, ou povos indígenas, e não índios, é um conteúdo recorrente nos perfis dos indígenas nas redes sociais.
Crédito: TV Cultura
Além disso, indígenas entrevistados criticaram o menosprezo a situações de racismo contra os indígenas no país e compartilharam situações em que foram protagonizadas por jornalistas, denunciando também pouca atenção ao que acontece nas redes sociais.
No Ministério Público Federal (MPF) do Acre, os apresentadores do podcast Submundo foram condenados a pagar R$ 100 mil de indenização por danos morais coletivos e racismo praticados contra os povos indígenas. No Mato Grosso do Sul, como resultado de um acordo entre o MPF e os radialistas Cícero Lima Faria e Paulo Vagner Santos da Silva, a emissora Grande FM teve que fazer campanhas enaltecendo os valores da cultura indígena pelo prazo de um ano.
Excelência e inovação entre os independentes, mas e o alcance?
A emergência de veículos independentes foi considerada uma importante e positiva mudança na cena midiática do Brasil na última década, por “diversificar os tradicionais monopólios de produção jornalística com investigações de excelente qualidade sobre temas não abordados devidamente pela grande imprensa, como direito à terra, conflitos fundiários e violência contra os povos indígenas”.
Os jornalistas independentes foram elogiados também pela sensibilidade e pelo primor ao cobrir pautas que têm povos indígenas e comunidades tradicionais como fontes e por experimentações e inovações, como o uso, o cruzamento (e até mesmo a criação) de bases de dados, produções multimídias e parcerias com veículos da imprensa nacional e internacional como a Folha de São Paulo e o The Guardian.
A agência Amazônia Real foi celebrada como a grande novidade midiática dos últimos anos, especialmente pelo foco e por estar na Amazônia e pela incorporação de indígenas na produção jornalística.
As fundadoras da agência Amazônia Real, Elaíze Farias e Kátia Brasil, foram homenageadas no 16º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) em 2021, ano em que a série especial “Ouro do Sangue Yanomami’, uma parceria entre Amazônia Real e Repórter Brasil, foi uma das vencedoras do 10º Prêmio Amaerj Patrícia Acioli de Direitos Humanos.
Crédito: Abraji
Algumas pessoas, porém, manifestaram preocupações com o alcance de público, a com dificuldade em falar com os não convertidos e com a sustentabilidade financeira dos veículos de mídia independente.
Falha na formação, escuta e a crise da imprensa
Algumas pessoas acreditam que a falta de aprofundamento da cobertura da imprensa é também decorrente de falhas na formação dos jornalistas.
Alguns entrevistados acreditam que "essa educação deficiente de todos nós", “pressa”, “pressão do tempo”, “velocidade”, mas também “prepotência”, "arrogância", “mentalidade colonialista” não permitem que os jornalistas escutem, dialoguem e tenham encontros significativos com esses povos e seus modos de vida, com o Brasil.
“Eu me lembro como se fosse hoje o dia que me senti aquém do tema. A história me obrigou a ler sobre a terra, a entender sobre o passado daquela terra, daquela região, que passava pela Guerra do Paraguai. Ali eu me dei conta que o que estava fazendo até então não tinha muito sentido. Se a gente quiser entender as questões agrárias, indígenas, rurais, temos que estudar, ler, correr atrás da informação antes de pisar num território indígena, e ali ouvir com muito tempo e atenção os anciãos. Eles têm uma memória impressionante. Muitos desses lugares têm séculos de acúmulos de história.” (Jornalista)
Legenda: Kumuã: os especialistas de cura do Alto Rio Negro
Crédito: Amazônia Real
Os encontros, a construção de relações de confiança e o repensar da linguagem levam e demandam cuidado, tempo, deslocamentos e recursos financeiros, condições de trabalho cada vez mais escassas nas redações.
A crise financeira da imprensa foi descrita como uma limitação para a produção de reportagens de longa duração e ao redor do Brasil, não de hoje, restringindo o que sabemos sobre o país quase sempre a partir de um olhar burocrático e político de Brasília.
Os temas difíceis e “esquerda paternalista”
Ainda que a maior parte dos jornalistas tenha preferido não nomear suas principais fontes de informação, vários disseram estar em contato com lideranças indígenas, muitas delas via WhatsApp.
Alguns profissionais, entretanto, mencionaram sentir falta de materiais de referência, dificuldade de acessar fontes e identificar pautas — uma parte deles relatou experiências em que não tiveram retorno de fontes indígenas, mesmo após diversas tentativas de contato. Essa questão também apareceu em entrevistas com os jornalistas regionais.
Outros fizeram questão de ressaltar que não é apenas a imprensa, mas também o próprio movimento indígena, indigenista, ambientalista que projeta e reforça, algumas vezes, a visão romântica sobre os povos indígenas.
Entre profissionais que não cobrem exclusivamente esses temas, existe a sensação de que certos assuntos são evitados como, por exemplo, indígenas a favor do garimpo e a produção de soja em terras indígenas. Na opinião deles, essas são pautas que deveriam receber mais atenção, para que contextos específicos e o que (ou quem) levou a determinadas decisões pudessem ser melhor compreendidos pela sociedade.
Indígenas na grande imprensa e comunicação como direito
Uma pequena parcela de entrevistados defendeu que os indígenas deveriam “demarcar as telas” da mídia tradicional, considerada “pouco inclusiva”, “muito elitista”, ainda com “pouca diversidade” em suas equipes.
Não se referindo a indígenas na mídia tradicional, mas a novidades no campo da comunicação, diversos entrevistados de públicos engajados citaram, com entusiasmo, a Mídia Índia – mais em Mídias e influenciadores indígenas.
Os povos indígenas têm o direito de estabelecer seus próprios meios de informação, em seus próprios idiomas, e de ter acesso a todos os demais meios de informação não indígenas, sem qualquer discriminação.